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Um raciocínio ingênuo e dois arroubos juvenis

Recusa do estabelecimento de um preço global para o carbono coloca EUA e China em posição semelhante à dos grileiros, ou da máfia.

Folha

—Será que chegaremos a ver esses morros restaurados? Perguntou a amiga de infância com quem eu caminhava na praia do litoral norte, olhando as enormes manchas longitudinais de terra ocre que pautam o verde dos morros da Serra do Mar desde as grandes chuvas do último Carnaval.

Poucos dias depois, discutindo o conflito em Gaza em um almoço com amigos, um deles comenta: “Acho que não viveremos para ver a solução da questão IsraelPalestina“.

O elemento comum aos dois diálogos é o tempo. Mais precisamente, é a consciência da limitação do tempo que, na minha experiência pessoal, nos acomete após os 60 anos.

Essa consciência —ao menos nessa infância da terceira idade— provoca uma inevitável sensação de desconforto a cada vez que se instala, mas tem suas compensações. A mais importante delas, a meu ver, é nos livrarmos da ilusão de que seremos capazes de usufruir plenamente dos resultados de nossos esforços. Isso, ao menos teoricamente, nos libera para agirmos mais em função das nossas crenças e princípios, em oposição às conveniências de ocasião.

Essa idade pode também trazer um melhor conhecimento da vida como ela é, assim como uma maior capacidade de aceitação das suas imperfeições. (Uma belíssima manifestação de inconformismo diante da vida como ela é está no monólogo “life as it is” do Peter O’Toole, no filme “The Man of la Mancha”, que se encontra no youtube.)

É por isso que, com certo espanto, me dou conta da persistência em minha mente de pensamentos ingênuos e ideias muito combativas quando me defronto com as dificuldades do enfrentamento do aquecimento global.

O raciocínio inicial é simples. Se o aquecimento global decorre do excesso de emissões de gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera e se é necessária a redução a zero dessas emissões até 2050, a solução natural seria cobrar um preço determinado por cada tonelada de GEE emitida.

Pode-se discutir se essa cobrança deveria ter efeito retroativo e por quantos anos, mas parece inquestionável que ela deveria começar imediatamente. Além de ser um poderoso estímulo para a redução de emissões, seria justa, na medida em que oneraria diretamente os emissores, beneficiando a coletividade.

Pois é. O raciocínio é simples, parece razoável, mas deve ser ingênuo.

Ao menos é o que se deduz das reiteradas rodadas de negociações internacionais dos últimos 30 anos, onde a ideia do estabelecimento de um preço global para o carbono tem sido sistematicamente recusada pelas nações ricas, que são os maiores emissores; especialmente China e EUA.

Essa recusa levou-me ao questionamento que já mencionei nessa coluna em dezembro passado. O que diferencia o comportamento de um grileiro na Amazônia —que invade uma terra pública que não lhe pertence e a degrada através do desmatamento— de uma nação rica —que ocupa com seus gases a atmosfera que tampouco lhe pertence, promovendo sua degradação?

Outro raciocínio assemelhado, ocorreu-me ao refletir sobre a estratégia americana de combate ao aquecimento global. Os EUA aprovaram no ano passado o “Inflation Reduction Act” (IRA), que, apesar do nome, é um pacote de medidas financeiras contendo subsídios de US$ 369 bilhões (R$ 1,8 trilhão) para o desenvolvimento de tecnologias “limpas” por empresas localizadas no seu território.

Os europeus acusaram os EUA da prática de concorrência desleal em função dos elevados subsídios, mas o fato é que se verificou desde a aprovação do IRA uma sensível aceleração no desenvolvimento e adoção de tecnologias que poderão reduzir sensivelmente a emissão de GEE na geração de energia, produção de aço e cimento, transportes aéreos, marítimos e vários outros processos industriais.

Naturalmente, essas inovações são bem-vindas e deverão contribuir substancialmente no esforço global para atingir o net zero, embora não haja nenhuma garantia de que isso ocorra até 2050. Também contribuirão, através de sua comercialização, para gerar resultados compensadores para as empresas inovadoras e o país onde se localizam, os EUA.

É neste ponto do raciocínio que, sorrateiramente, se insinua em minha mente mais um pensamento irreverente. Se os EUA são historicamente o país que mais emitiu GEE, sendo responsáveis isoladamente por 25% dos gases que hoje ocupam a atmosfera, e se serão também o país que desenvolverá e venderá as tecnologias para que o mundo possa lidar com esse problema, haveria aí alguma semelhança com a prática da máfia de vender proteção contra a ameaça pela qual ela própria é responsável?

“O pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar…”

Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2023/11/um-raciocinio-ingenuo-e-dois-arroubos-juvenis.shtml

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Candido Bracher