Alunos que cursaram escolas privadas no ensino fundamental vão para escolas técnicas estaduais no ensino médio para aumentar as chances de entrar na universidade pública
Valor
O Congresso acabou de atualizar a lei das cotas no ensino superior, aprovada pela primeira vez em 2012, uma das políticas sociais mais transformadoras da história do país, tendo ampliado significativamente a presença de negros e pobres nas universidades públicas. A atualização corrigiu pequenas distorções que havia na lei original. Mas, será que poderíamos fazer ainda mais para igualar as oportunidades, colocando cotas também nas escolas técnicas estaduais?
Estudos mostram que a política de cotas aumentou a presença de alunos de escolas públicas e negros nas faculdades públicas, sem perda de qualidade no ensino. Além disso, o maior número de negros formados aumentou a potência das suas vozes, o que fez crescer a presença do tema racial na mídia. Finalmente, o aumento do número de médicos, advogados e engenheiros vindos de famílias pobres está servindo como exemplo para muitos jovens que antes nem pensavam em fazer o Enem.
As mudanças na lei foram corretas, no sentido de permitir que alunos de escolas públicas possam entrar na faculdade tanto pelo sistema de livre concorrência como pelas cotas, o que for mais favorável para eles. Isso é importante porque em alguns casos a nota de corte no sistema de cotas era maior do que no sistema de livre-concorrência. Além disso, houve uma redução do critério de renda familiar máxima para ter direito às cotas, de 1,5 para 1 salário-mínimo per capita, equivalente a R$ 1.320 por pessoa.
Mas, um ponto importante é que lei também vale para as escolas técnicas federais. Estas geralmente têm maior qualidade e um processo seletivo concorrido. As cotas são necessárias para diminuir o número de alunos de renda mais alta que fazem o ensino fundamental em escolas privadas e depois entram nas escolas técnicas no ensino médio para aumentar as chances de ingressar nas universidades públicas via cotas.
Alunos de renda mais alta usam as escolas técnicas estaduais para entrar na universidade pública via cotas
Entretanto, a maioria das escolas técnicas estaduais não têm um sistema de cotas. Assim, muitos alunos que cursaram escolas privadas no ensino fundamental entram nestas escolas para aumentar suas chances de entrar na universidade pública. Esses alunos se beneficiam várias vezes: por poderem pagar por um ensino fundamental de qualidade no setor privado, que os permite passar nos processos seletivos para cursar o ensino médio em escolas de excelência no sistema público; por não pagarem mensalidade nestas escolas; e por usufruírem das cotas reservadas para alunos de escolas públicas para ingressarem no ensino superior público, novamente gratuito.
A figura mostra a porcentagem de alunos que fizeram o último ano do ensino fundamental no sistema privado e depois mudaram para uma escola técnica de alta qualidade, estadual ou federal, no primeiro ano do ensino médio, antes e depois das cotas. Podemos verificar que, antes das cotas, 51% dos alunos de ensino médio das melhores escolas técnicas vieram de escolas privadas no ensino fundamental.
Vale notar que se considerarmos todas as escolas técnicas, independentemente da qualidade, 29% dos seus alunos vinham de escolas privadas nas escolas federais e 15% nas estaduais. Ou seja, a transição do sistema privado para o sistema público ocorre principalmente nas melhores escolas técnicas. Como não havia cotas nas universidades naquela época, a procura por escolas técnicas visava principalmente uma educação de qualidade a custo zero.Após as cotas, a parcela de alunos vindos de escolas privadas declinou para 38% nas escolas técnicas federais, mas subiu para 56% nas técnicas estaduais, que geralmente não têm cotas. Ou seja, muitos alunos de renda mais alta parecem estar usando as técnicas estaduais como trampolim para as universidades públicas estaduais e federais pelas cotas, no lugar dos alunos de famílias mais pobres. Vale notar que muitas escolas técnicas também oferecem ensino regular, e que a maior parte dos alunos de classe mais alta cursam justamente este tipo de ensino.
Alguns estados já adotam cotas nas suas escolas técnicas, como o Ceará, o Rio de Janeiro e alguns colégios de aplicação, mas são exceção à regra. As escolas técnicas de São Paulo concedem um bônus de 3% para alunos afrodescentes e de 10% para alunos de escolas públicas no seu processo seletivo, mas isso não é suficiente para aumentar de forma decisiva a sua diversidade.
Seria importante também entendermos porque as escolas técnicas geralmente são melhores do que as escolas normais na mesma rede. Será que é porque elas têm um processo seletivo concorrido, que seleciona os alunos com maior potencial? Ou porque a maioria destas escolas são em tempo integral? Ou ainda porque suas práticas de gestão e a qualidade dos professores são melhores do que no resto do sistema?
Em suma, é necessário que todas as escolas públicas do país adotem a lei de cotas, para diminuir o número de alunos de renda mais alta que as usam para entrar nas universidades públicas através das cotas reservadas para alunos de escolas públicas.
Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/cotas-nas-escolas-tecnicas-estaduais.ghtml
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