Ao me colocar no lugar de outros, ainda não consegui entender algumas certezas
Estadão
Amós Oz, escritor israelense, disse em seu livro Como curar um fanático que a curiosidade era a força que o movia. Sabemos que dúvidas e questionamentos permanentes são fundamentais para progresso em todos as áreas, das ciências às artes. Ele foi além: a curiosidade seria uma virtude moral, uma pessoa interessada é um pouco melhor. Melhor pai, melhor amigo e melhor amante. Por isso, ele sempre se fez a pergunta: “E se eu fosse ele?”. Como judeu israelense, procurou se colocar no lugar de um palestino, refugiado ou não. Acho uma postura formidável. Ao menos, devemos tentar ouvir.
Em que momento muitos de nós perderam a curiosidade que as crianças têm e o desejo de saber como as coisas e as mentes funcionam? Nos dias de hoje, temos muitas certezas absolutas e as opiniões alheias são descartadas de pronto.
Eu mesma resolvi viver numa bolha nas redes sociais. Fechei todas as minhas contas, e o algoritmo me devolve sempre para os mesmos interlocutores. Achava que vivia melhor na bolha. Ledo engano. Passei a tentar me colocar no lugar de outros, ótima experiência. Mas ainda tenho dificuldade de entender algumas certezas.
Por exemplo: Henry Kissinger. Seus obituários vieram com elogios e críticas. É natural tendo sido ele uma figura tão controversa. O que não entendo é outro tipo de contradição: criticar Lula por sua simpatia a regimes autoritários e, ao mesmo tempo, admirar Kissinger, que apoiou as ditaduras militares na América Latina. Milhares morreram nos anos 70 por aqui.
Outra: grupos feministas, antirracistas, LGBTQIA+ e defensores de direitos humanos estão há semanas defendendo regimes que são conhecidos por apedrejar e matar mulheres que só desejam estudar, por seu antissemitismo — que é racismo também (ou vidas judias não importam?) —, por condenar à morte casais homoafetivos e onde há zero de liberdade de manifestação ou expressão. Como conciliar tudo isso?
A agenda ambiental brasileira é outro desafio. Lula sugere uma governança global para o meio ambiente. Falar menos e fazer mais. Como, então, justificar subsídios e contratação de térmicas a carvão, impostos sobre importação de carros elétricos, pressão para reduzir preços de combustíveis fósseis, exploração de petróleo na Margem Equatorial e o PAC incluir projetos que ameaçam o meio ambiente, como Ferrogrão?
Exemplos como esses se multiplicam. Um israelense sionista a favor da paz, como Oz, teve mais capacidade de se colocar no lugar de um palestino do que tenho para compreender tantas contradições. Mas continuo tentando.
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