Folha
“Quando os fatos mudam, eu mudo de opinião. E o sr., o que faz?”
A frase, atribuída ao economista John Maynard Keynes, ocorreu-me ao refletir sobre o significado de uma medida anunciada pelo presidente dos EUA, Joe Biden, no fim de janeiro, que teve modesta repercussão entre nós.
Trata-se da decisão de suspender indefinidamente licenças para o estabelecimento de novos terminais de exportação de GNL (gás natural liquefeito), ao longo da costa americana.
Para que se tenha ideia do alcance da medida, ela interrompe o processo de aprovação de 17 projetos de terminais, cuja exportação total de gás, calcula-se, resultaria na emissão anual de 3,2 bilhões de toneladas de GEE (gases de efeito estufa), equivalentes a aproximadamente o dobro das emissões brasileiras, ou à totalidade das emissões da União Europeia.
Uma breve explicação sobre o GNL. A forma mais econômica de transporte do gás natural é através de gasodutos, ligando os campos de onde o gás é extraído aos consumidores.
É como o gás proveniente da Rússia é transportado para a Europa, por exemplo. Tem a vantagem do custo relativamente baixo, mas vincula permanentemente produtores e consumidores, sujeitando ambos aos inconvenientes das situações em que se tem um único fornecedor (monopólio), ou consumidor (monopsônio). Os países europeus sofreram recentemente os efeitos negativos dessa situação, quando a invasão da Ucrânia acarretou a interrupção do fornecimento de gás pela Rússia.
O GNL tem origem no mesmo gás natural, mas os gasodutos o transportam apenas até o terminal de exportação, onde ocorre a liquefação do gás através de um processo que envolve seu resfriamento a temperaturas de -160ºC. O gás é, então, colocado em tanques e transportado em navios especialmente preparados até o porto do país consumidor, onde um terminal de importação promove a sua gaseificação, para que possa ser consumido.
Os EUA, que em 2023 assumiram a liderança mundial em exportações de GNL, à frente de Qatar e Austrália, não tinham nenhuma relevância nesse mercado até 2016. A rápida evolução da participação americana reflete a grande expansão da extração de gás através de “fracking” (fraturamento hidráulico) e explica a intensa campanha promovida pela indústria de óleo e gás pela aprovação dos projetos.
Os argumentos desse grupo são os usuais: geração de empregos locais, segurança energética para os países importadores e até a defesa de que os projetos contribuiriam para a redução das emissões globais, uma vez que, em muitos países consumidores, o gás substituiria o carvão, que é mais nocivo ao ambiente.
Por outro lado —refletem os defensores da suspensão das licenças—, os investimentos necessários à expansão da capacidade, especialmente nos terminais de importação dos países consumidores, os comprometeriam economicamente ao consumo do produto por um prazo muito mais dilatado do que aquele em que se prevê a disponibilidade farta de formas limpas de geração de energia.
O presidente Biden, ao determinar a medida, afirmou: “Essa pausa em novas aprovações de GNL reconhece a crise climática pelo que ela é: a ameaça existencial do nosso tempo”. A frase reflete uma disposição consequente em relação ao texto final da COP28, que prescreve a “transição em direção ao fim dos combustíveis fósseis nos sistemas energéticos”.
A suspensão das licenças de terminais de GNL, embora não seja uma medida definitiva e possa ser revertida a qualquer tempo, é a primeira iniciativa restritiva relevante do ponto de vista ambiental adotada pelos EUA na esfera federal.
Até agora a principal legislação ambiental americana, o IRA (lei de redução da inflação), limita-se a estimular, através de vultosos incentivos fiscais, o desenvolvimento de tecnologias “limpas”, mas não prevê nenhuma oneração às atividades emissoras de GEE.
Não há como minimizar a importância dessa medida que aproxima os EUA da União Europeia, que até o momento tem liderado os esforços pelo estabelecimento de uma governança global de combate às mudanças climáticas.
Cria-se uma expectativa fundada de que o país mais rico do mundo passe de obstáculo a agente na superação do desafio climático. Os fatos estão mudando, e eu me sinto inclinado a mudar de opinião.
Sinto-me também tentado a encerrar esta coluna com o tom otimista da última frase, mas isso implicaria ignorar a fragilidade dessa importante decisão ante as eleições americanas, em novembro próximo.
Para usar uma metáfora usual nos EUA, a suspensão das licenças não tem sequer a chance de uma bola de neve no inferno, de sobreviver a uma possível vitória do Partido Republicano.
O candidato que lidera as prévias do partido, Donald Trump, declarou em relação ao petróleo, com sua habitual elegância vernacular, que os EUA irão “drill, baby, drill” (perfurar, meu bem, perfurar), caso ele volte à Casa Branca. E não adianta depositar esperanças na sua contendora, Nikki Haley, que também é crítica das políticas ambientais de Biden, chegando a chamar sua principal medida ambiental, o IRA, de “manifesto comunista”.
Jane Goodall, a ambientalista e primatóloga que diz ter passado os melhores anos de sua vida entre os chimpanzés na Tanzânia, abriu mão conscientemente desse modo de vida, por acreditar que poderia contribuir mais para a preservação do planeta promovendo a consciência ecológica através de suas manifestações públicas.
Em janeiro, prestes a completar 90 anos, ela declarou em uma entrevista em Davos que 2024 é um ano decisivo para a superação dos desafios climáticos do planeta, uma vez que quase metade da população mundial irá às urnas eleger seus líderes em países tão importantes como os EUA, a Índia, o México e a África do Sul. Que seu alerta seja ouvido!
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2024/02/quando-os-fatos-mudam.shtml
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