Valor
Em maio de 1979, na entrada da famosa residência oficial em 10, Downing Street, a recém-eleita primeira-ministra britânica, Margareth Thatcher, invocou a oração de São Francisco de Assis para caracterizar o que seria o seu governo. A oração começa com “onde existir discórdia, que eu traga a harmonia” – o que sugere uma busca da conciliação. Mas continua com “onde existir dúvida, que eu traga a fé. Onde existir erro, que eu traga a verdade” – o que indica uma postura muito mais combativa. Thatcher claramente pautou seu governo mais pelas segunda e terceira frases da oração do que pela primeira. Isto porque o governo tinha o diagnóstico de que apenas mudanças radicais, que rompessem o consenso previamente existente (gestão macro frouxa e uma versão britânica de corporativismo), seriam suficientes para interromper e idealmente reverter o declínio econômico observado desde o final da Segunda Guerra, e que se intensificou na década de setenta. Não sem custos, e muito menos sem controvérsias, a estratégia funcionou.
Quando se pensa em declínio econômico prolongado, o caso paradigmático é o da Argentina. Vale lembrar que até a segunda metade da década de 60 do século passado o PIB argentino era maior que o brasileiro, e atualmente não chega a um terço do mesmo. Enquanto diversos países da região têm reservas internacionais superiores a 10% do PIB, a Argentina trabalha com reservas líquidas negativas. A média simples da inflação no Brasil, Chile, Colômbia, México e Peru ficou próxima a 5% em 2023, e atingiu 211% na Argentina. O PIB argentino caiu em seis dos últimos dez anos – a economia já estava em recessão antes da pandemia.
Diante desse estado de calamidade econômica, não surpreende que o governo Milei, ancorado pelo ministro da Economia e pelo Conselheiro da Modernização da Economia, tenha começado com uma ambiciosa agenda de reformas, em paralelo com medidas voltadas para a estabilização macroeconômica, no estilo combativo acima citado, e não na busca de certos consensos. A tentativa de ajuste rápido, front-loaded, reflete também o aprendizado com as dificuldades, ocasionadas por excesso de gradualismo do governo Macri.
No lado do ajuste macro, o governo, corretamente, abandonou, pelo menos por ora, a ideia de dolarização, e preferiu focar no necessário ajuste fiscal – sem o que nenhum regime monetário seria sustentável. O plano é promover um ajuste equivalente a 5% do PIB, que leve ao equilíbrio nominal ainda em 2024, predominantemente através de controle de despesas: redução de subsídios nas áreas de transporte e energia, congelamento do investimento público, e limites das transferências para as províncias. Do lado da receita, o programa prevê aumentos de taxas sobre importações e combustíveis, entre outras. Tal estratégia já dá sinais incipientes de resultados, com superávit fiscal registrado no mês de janeiro, pela primeira vez em mais de uma década.
Além disso o governo implementou em dezembro uma maxidesvalorização da moeda (54%) e se valeu de regimes tributários especiais para, efetivamente, manter um regime de taxas de câmbio múltiplas. O Banco Central trabalha com taxas de juros nominais elevadas, mas estas, tendo em vista a aceleração inflacionária, ainda são bastante negativas em termos reais – com isso, o governo ainda não levantou os controles de capitais vigentes, mas conseguiu comprar US$ 7 bilhões em reservas. A política cambial desde a desvalorização contempla depreciação predeterminada em 2% ao mês, indicando um esboço de âncora nominal, e tendência de apreciação da taxa de câmbio real.
A estratégia combina medidas de ajuste de curto prazo com uma ambiciosa agenda de reformas estruturais, incluindo privatização e mudanças trabalhistas, que poderia efetivamente transformar o ambiente de negócios no país. Aqui a falta de apoio parlamentar do governo tem ficado manifesta, e uma derrota, no início do mês, praticamente retornou a agenda para o ponto de partida – Milei conta com um apoio básico de 38 entre 257 deputados e 7 dos 72 senadores. O presidente parece estar costurando uma aliança com governadores de províncias (nenhum eleito por seu partido) como mecanismo de construir uma maioria parlamentar. Por outro lado, o apoio da comunidade financeira internacional, a começar pelo FMI, que recentemente estendeu o programa com o país, segue firme.
Mas, além das dificuldades legislativas, o maior risco para o governo Milei é perder apoio popular e social para as suas políticas. Isto porque a terapia, inevitavelmente, envolve corrigir preços relativos extremamente distorcidos, o que, em um primeiro momento, tende a corroer o poder de compra da população. Trata-se do que, no contexto de planos de estabilização do FMI em meados do século passado, costumava ser chamado de “inflação corretiva”. A desvalorização cambial detonou uma aceleração inflacionária, 20% ao mês, em média, desde dezembro (mais de 800% em termos anualizados).
A taxa de aprovação presidencial, estimada em uma pesquisa inicialmente em 49%, deslizou para 45% em fevereiro, enquanto a taxa de desaprovação subiu de 40% para 51%. O período mais delicado deve ser abril e maio, quando o impacto dos ajustes de preços sobre o poder de compra deve estar em seu ponto mais intenso, vindo de uma situação inicial já bastante delicada – uma pesquisa recente da Universidade Católica aponta uma alarmante taxa de pobreza no país, em 57%. É essa linha de arrebentação que o governo deve superar para conseguir sustentar seu programa.
Resumindo, a equipe econômica conta com nomes de grande capacidade técnica e valiosas conexões internacionais. O sequenciamento parece correto, a direção escolhida tenta acertadamente enfrentar vários desafios, alguns históricos, da economia argentina. E a opção pela terapia de choque parece adequada, dado o histórico do país e a aparente demanda por mudanças da maioria do eleitorado – Milei nunca escondeu o que queria fazer. Normalização da safra e possíveis ganhos derivados do fenômeno El Niño podem impulsionar o agro e a atividade econômica em termos mais amplos, ajudando o governo. Mas a inflação não pode seguir tão alta por tanto tempo.
Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/uma-nova-argentina.ghtml
As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.