Folha
No começo, foi Tio Abilio.
Era julho de 1968. Eu tinha nove anos e viajava com meus pais e um primo da mesma idade. Após conhecermos o Peru, fomos para Bariloche, onde meu sonho de aprender a esquiar foi frustrado pela falta de neve.
Lá meus pais encontraram seus amigos Abilio e Auri, que os convidaram a juntar-se ao grupo da família Diniz, em uma excursão em ônibus fretado pelos lagos chilenos.
“Tio Abilio” era claramente o líder do grupo, que incluía sua irmã Vera, seus dois irmãos, Alcides e Arnaldo, e as esposas deles, Rosaura e Lica. Quando chegávamos aos hotéis, era sempre ele quem tratava do check-in e dava as orientações.
Sua liderança me impressionava bastante, é verdade, mas não tanto quanto a magnífica estatura de seus irmãos —ambos com quase dois metros— e a beleza de suas mulheres. Foi uma viagem alegre, com os adultos se revezando no microfone do ônibus, contando piadas e cantando.
Para meu primo e para mim, uma experiência completamente diferente, só com adultos que nos davam muita atenção.
Durante minha adolescência, houve apenas encontros esparsos em Ibiúna, na casa de meu padrinho, Luiz Carlos Bresser-Pereira, que era importante executivo do Pão de Açúcar. Apesar da diferença de idade, sempre havia um cumprimento amistoso da parte de Abilio e, não raro, algum desafio.
Mais tarde, mais de uma vez ouvi meu pai falar com admiração do talento empresarial de Abilio, como foi o caso, por exemplo, da aquisição da Eletroradiobraz, em 1976.
Anos depois, logo após a fundação do BBA Creditanstalt por meu pai e seu sócio, Beltran, em 1988, eu —que era diretor— visitava o diretor financeiro do Pão de Açúcar procurando captar depósitos a prazo para o novo banco. A tarefa era inglória.
O Pão de Açúcar era uma empresa muito líquida e tinha critérios para selecionar os bancos depositários que aparentemente excluíam uma instituição pequena e recém-criada como o BBA. Mas as coisas mudaram; aos poucos o Pão de Açúcar passou a necessitar de recursos, e eu vi ali uma chance de estreitar as relações e mostrar que éramos um banco determinado a uma relação de autêntica parceria.
Ocorre que a mudança de política de caixa da empresa acabou por revelar uma grande crise de liquidez, que a levou de aplicadora de recursos a grande tomadora no espaço de poucos meses. A época era de grande turbulência, e os boatos corriam soltos.
Lembro-me de um conhecido consultor que deu várias palestras no BBA afirmar, diante de uma audiência de funcionários do banco e executivos de clientes: “Eu sempre digo que este país só mudará depois que quebrarem um banco, uma empreiteira e um grande supermercado; banco e empreiteira já quebraram, e há um supermercado que está quase…”.
Dada a grande confiança que depositávamos na empresa, havíamos concedido crédito além do montante que seria razoável em uma análise fria. Eu me preocupava a ponto de perder o sono, mas havia pouco o que fazer.
“A lo hecho, pecho” dizia Beltran, descendente de espanhóis. Eu acompanhava os boatos e colhia as informações que podia, sem jamais recorrer a Abilio. Dizia-se que um dos seus irmãos defendia abertamente um pedido de concordata (a recuperação judicial da época), enquanto Abilio preocupava-se em estruturar a empresa para enfrentar a situação.
Foi o que ele fez. Entregou uma das “joias da coroa” —a rede de supermercados em Portugal—, reestruturou a empresa pagando a todos os credores, sem propor desconto. Creio que nunca lhe contei sobre minhas noites insones, mas a partir daí aliei um sentimento secreto de gratidão à admiração e afeto que já nutria.
Superada a crise financeira, Abilio conduziu um penoso processo de negociação familiar, que o levou à posição de acionista controlador.
Concluída essa etapa, promoveu a profissionalização da empresa, o que implicou que sua filha Ana —profissional competente e minha amiga havia décadas— deixasse sua posição executiva para tornar-se membro do conselho.
Ambos fizeram o que consideravam ser melhor para a empresa, em que pese o custo pessoal da medida.
O BBA foi um dos dois bancos selecionados para a abertura de capital, em 1995, e foi também o assessor para a negociação do ingresso do Casino como sócio minoritário, em 1999. Eu fui pessoalmente a Paris para um jantar introdutório com Jean-Charles Naouri e acompanhei todas as negociações.
Abilio estava entusiasmado com a parceria, que negociou com habilidade. Lembro-me dos jantares de celebração do acordo; um, pequeno, na casa do David de Rothschild, CEO do banco que assessorava o Casino, e outro na casa do meu pai em São Paulo, com a participação de mais pessoas envolvidas na negociação.
Durante alguns anos, pude acompanhar como membro do conselho de administração o bom desenvolvimento da sociedade, tanto assim que em 2005 se negociou um aumento da participação do Casino.
Mas a parceria azedou. Abilio acreditava que Naouri compartilhasse suas visões e se sentiria sempre privilegiado por ter alguém com sua capacidade e conhecimento do varejo brasileiro à frente da empresa, enquanto o francês claramente visava o controle, que adquirira para exercício em data futura.
Creio que, mais que a divergência de visões, foram as diferenças de temperamento que determinaram o rompimento. Por um lado, o caráter extrovertido, impulsivo, afetivo e transparente de Abilio. Por outro, um gênio financeiro, recluso, muito introvertido e bastante desconfiado.
Pouco antes da eclosão do conflito, eu havia pedido para sair do conselho, em razão de responsabilidades adicionais no Itaú BBA. Assim, fui poupado de participar de reuniões conflituosas, nas quais os advogados tinham maior relevância que os conselheiros.
Abilio ainda perguntou minha opinião sobre a operação que ele havia elaborado com o Carrefour e que foi o elemento de deflagração do conflito.
Mantendo nosso compromisso tácito de sinceridade, escrevi que não gostava da ideia e dei minhas razões. Ele respondeu discordando frontal, mas amigavelmente. Nossa amizade havia passado um grande teste.
Ainda me coube desempenhar um pequeno papel na construção do acordo que encerrou a sociedade. Em uma demonstração de seu pragmatismo, Abilio contratou William Ury, especialista na solução de conflitos, e pediu-me que ligasse para David de Rothschild, propondo-lhe que recebesse Ury. O banqueiro francês acedeu e, contra todas as expectativas, semanas depois o acordo foi assinado.
Abilio tornou-se uma pessoa muito mais leve após sua saída do Pão de Açúcar. Mantivemos contato estreito pessoal e profissionalmente.
Ainda o acompanhei em mais uma viagem a Paris, para selar o seu primeiro acordo com o Carrefour. Após a negociação, convidou-me para um delicioso lanche na Caviar House. Estava muito feliz.
Mais recentemente, tivemos um encontro triste, quando o visitei em sua casa poucos dias após a morte de João Paulo. Foi uma conversa longa e densa, na qual ele não escondeu sua profunda tristeza, mas deixou claro que manteria a disposição positiva que sempre teve diante da vida.
Na última conversa que tivemos, ele falou entusiasmado do projeto “Pacto Contra a Fome”, liderado por sua mulher, Geyze. Admirei mais uma vez a sua autêntica capacidade afetiva e a sua preocupação constante com as fragilidades do país.
Tenho ainda em meu celular as suas palavras em resposta à minha mensagem pelo seu aniversário de 87 anos: “Agradeço a Deus por ter amigos como você”.
É recíproco, caro amigo. E, como creio que uma relação só se desfaz quando ambos partem, sei que continuaremos conversando.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2024/03/abilio.shtml
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