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O que está acontecendo com os gastos da Previdência e do BPC?

Marcos Mendes e Rogério Nagamine Constanzi
Brazil Journal

Governo e analistas comemoram o bom desempenho da receita do governo no começo do ano, como sinal de que será possível chegar perto da meta de resultado primário zero. Não têm dado atenção, contudo, o forte crescimento da despesa. Em especial, aquela com benefícios previdenciários e assistenciais.

No ritmo em que está crescendo, essa despesa obrigatória exigirá, já em 2024, corte significativo em outras despesas. Isso suscitará resistência política. O próprio Presidente da República já está falando em flexibilizar o limite de gastos.

Se houver essa flexibilização, o déficit e a despesa total ficarão longe das metas atuais, e o arcabouço fiscal terá sua credibilidade comprometida.

Em janeiro de 2024 a despesa com benefícios previdenciários do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) foi, em termos reais, 4,4% maior que a de janeiro de 2023. Esse ritmo é muito superior limite máximo de crescimento da despesa imposto pelo arcabouço fiscal (2,5% ao ano). O RGPS, sozinho, representa 44% da despesa primária total, o que demonstra a pressão que exerce sobre o limite de gastos.

Os benefícios assistenciais (que incluem o Benefício de Prestação Continuada – BPC e outros de menor expressão, e que por simplificação chamaremos de BPC), embora tenham peso menor que o RGPS na despesa total, cresceram, em termos reais, inacreditáveis 16%, na comparação de janeiro de 2024 com o mesmo mês de 2023.

As duas despesas juntas foram as principais responsáveis pelo forte crescimento real da despesa primária total de 6,8%, na comparação de janeiro de 2024 com janeiro de 2023.

Nosso principal objetivo é mostrar que as fontes de pressão sobre esse gasto são persistentes, de modo que o ritmo atual de crescimento deve se manter ao longo deste ano e nos próximos.

As causas principais do aumento são a nova política de reajuste real do salário mínimo (SM) e a expansão do estoque de benefícios pagos.

Os aumentos do SM continuarão a ocorrer no futuro, a menos que se enfrente o impopular desafio de alterar a lei que foi recentemente proposta pelo atual governo e aprovada com facilidade pelo Congresso. Logo, esse fator de pressão do gasto tende a perdurar.

O aumento do estoque de benefícios se deve a fatores diversos, e sua origem não está muito clara em decorrência da falta de dados detalhados. As evidências disponíveis indicam que este também é um fenômeno persistente no tempo e que, por isso, continuará pressionando a despesa.

Os detalhes dos cálculos e dados aqui apresentados estão em texto para discussão publicado pelo Insper.

O aumento do salário mínimo

Desde janeiro de 2023 o SM vem sendo corrigido acima da inflação. Ele indexa aproximadamente 60% dos benefícios do RGPS e 100% do BPC. Simulamos a despesa do RGPS e BPC supondo que não tivesse havido os reajustes reais do SM e calculamos a diferença em relação à despesa efetivamente realizada.

Se tivesse havido aumento real do salário mínimo, as despesas do RGPS em doze meses até janeiro de 2024 estariam R$ 8,4 bilhões mais baixas. Isso representa nada menos que 22% do aumento real da despesa do RGPS, na comparação de 12 meses encerrados em janeiro de 2024 com os 12 meses encerrados em janeiro de 2023.

De modo similar, o impacto do aumento real do SM sobre a despesa do BPC foi de R$ 2,4 bilhões, sendo responsável por 23% do aumento real da despesa total de BPC.

Uma política adotada há tão pouco tempo já está produzindo impacto significativo no gasto. Esse efeito tende a ser crescente e cumulativo no tempo, à medida que reajustes reais do SM se acumulam sobre os reajustes reais anteriores.

Revogar os reajustes reais do SM pouco mais de um ano após sua aprovação parece uma tarefa hercúlea em termos políticos. O governo e o Congresso escolheram conscientemente esta política de reajuste, sabendo os estragos que causariam.

O estoque de benefícios pagos

Outro fator de aumento da despesa do RGPS e do BPC é o crescimento no número de benefícios pagos, que tem atingido taxas sem precedentes.

Considerando o estoque de benefícios do INSS como um todo, previdenciários, assistenciais e de legislação especial, o incremento relativo no ano de 2023 foi o maior de todo o período de 2005 a 2023, ou seja, o maior dos últimos 19 anos.

A Tabela 1 mostra que, no RGPS, a taxa de crescimento dos benefícios em 2023 foi a maior desde 2014, e só perde para o pico observado em 2013, ou seja, dos últimos 10 anos. A taxa de crescimento de 2022 também foi alta, ficando acima da taxa média do período. Temos, portanto, nos dois últimos anos, um quadro de aceleração no crescimento do estoque dos benefícios.

No BPC, a aceleração no crescimento do estoque de benefícios é ainda mais patente, muito acima do observado o passado recente, com crescimento de 7,8% em 2022 e 11,3% em 2023.

Estoque de benefícios do RGPS e do BPC pagos no mês de dezembro: 2010 a 2023

Tabela 1

A origem do aumento do estoque de benefícios

O aumento do estoque de benefícios pode vir tanto de uma aceleração das concessões de novos benefícios como de um arrefecimento na cessação de benefícios vigentes.

Não houve mudança relevante no padrão de cessação nos últimos três anos. Logo, o aumento do estoque só pode estar vindo do aumento nas concessões. De fato, é isso que mostra a Tabela 2.

As concessões de benefícios do RGPS vinham caindo em 2020 e 2021, mas sofreram reversão e passaram a crescer em 2022 e 2023.

Já as do BPC subiram em 2020, devido à flexibilização da concessão durante a pandemia. Em 2021, contudo, as concessões caíram. Mas voltaram a crescer com força em 2022 e 2023.

Concessão de benefícios do RGPS e BPC: 2014 a 2023 (mil benefícios)

Tabela 2

A questão é saber se esse aumento nas concessões é circunstancial ou duradouro.

A agilização das concessões e potenciais consequências

Uma provável causa do aumento das concessões vem de instrumentos adotados para acelerar a análise de requerimentos pelo INSS e reduzir a fila de espera de decisão da entidade.

Vários instrumentos foram adotados para agilizar a análise dos benefícios do RGPS e BPC.

Em 2021, o rito de concessão do BPC a pessoas portadoras de deficiência foi alterado[1], para contornar a falta de assistentes sociais disponíveis para analisar as condições sociais do pleiteante. Adotou-se um “padrão médio” de condições sociais, que dispensou a necessidade de avaliação individualizada.

De modo similar, foi instituído o “Atestmed”[2], uma solicitação padronizada de solicitação do benefício por incapacidade temporária (o antigo “auxílio-doença”) por período de até 180 dias, no qual apenas alguns pedidos, com sinais de desconformidade, são enviados para a perícia médica.

Recentemente, em 5/3/24, foi editada portaria[3] que autoriza a realização de perícia por meio de telemedicina para a concessão de diversos benefícios previdenciários e do BPC para deficientes.

Esses mecanismos de agilização de análise dos requerimentos podem ter diferentes efeitos sobre a despesa futura, a depender das hipóteses que sejam feitas em relação a: (1) o ritmo de apresentação de novos requerimentos de benefícios e (2) a maior ou menor leniência na concessão dos benefícios, em comparação aos métodos tradicionais:

a) Nas hipóteses de não haver aumento no fluxo de requerimentos pedindo novos benefícios, e de não haver maior leniência dos novos mecanismos expeditos de avaliação, então a consequência seria um aumento temporário do fluxo de concessões e a redução da fila de espera. A agilização dos procedimentos desrepresaria o estoque de requerimentos, aumentando o rtimo de concessões. Porém, tão logo a fila fosse substancialmente reduzida, voltaríamos a um ritmo de concessão de benefícios coerente com a média histórica.

b) Se, contudo, relaxarmos as duas hipóteses acima, admitindo que, por algum motivo, haja crescimento no número de requerimentos, ou que os novos métodos de avaliação dos requerimentos resultem em maior taxa de concessão que os métodos antigos, então a fila não cairá substancialmente (pois a saída mais rápida dos processos represados seria compensada pela entrada de volume crescente de requerimentos), e o ritmo de crescimento das concessões se manteria alto, nos níveis observados nos últimos dois anos (vide Tabela 2), não convergindo de volta para a média histórica.

O que poderia fazer o ritmo de requerimentos crescer ao longo do tempo? Em primeiro lugar, a própria tendência demográfica de envelhecimento, que aumenta a demanda por aposentadorias. Em segundo lugar, a percepção de que ficou mais fácil e menos custoso solicitar e ter aprovado um benefício, dados os novos métodos automáticos de análise. Pessoas que não cumpram integralmente os requisitos de concessão podem ser estimuladas a solicitar o benefício, apostando em uma checagem menos rigorosa dos requisitos legais.

Infelizmente, não há estatísticas detalhadas e de qualidade sobre os fluxos de novos requerimentos. Contudo, as poucas informações disponíveis nos dão algumas pistas.

A fila

Em primeiro lugar, os dados indicam que os novos procedimentos automáticos e expeditos parecem, de fato, estar acelerando as concessões. A estatística detalhada do estoque de benefícios emitidos, mostrada na Tabela 3, indica que o “auxílio doença”, principal alvo das medidas de simplificação e automação, por meio do Atestmed, é o benefício previdenciário – entre os de maior volume e peso na despesa – com maior taxa de crescimento: 28,5% em apenas um ano, contra uma média de 3,2% no total de benefícios previdenciários e acidentários. Em janeiro de 2024 esse benefício cresceu dez vezes mais que os demais: 1% contra 0,1%.

O BPC para portador de deficiência, que também teve a sua análise simplificada, tem taxa de crescimento do estoque de benefícios de 12,9% em um ano.

Estoque de benefícios administrados pelo INSS emitidos: jan/23, dez/23 e jan/24 (mil benefícios)

tabela 3

A questão é saber se essa aceleração nas concessões será temporária ou duradoura, como argumentado acima. Os dados sobre a evolução da fila de requerimentos pendentes jogam alguma luz sobre a questão.

O governo disponibiliza o dado oficial da fila de requerimentos de benefícios no portal da transparência. Os dados, contudo, não têm abertura que permitam diferenciar os benefícios do RGPS e os do BPC. A abertura da informação se faz separando os benefícios de auxílio por incapacidade temporária (o antigo “auxílio doença”) dos demais benefícios, registrados como “benefícios sob análise administrativa”. Neste segundo grupo estão incluídos diversos benefícios previdenciários e o BPC.

Em janeiro de 2024, o estoque de requerimentos aguardando solução estava menor que o de abril de 2023 em 269 mil pedidos. Usando a regra de bolso de que aproximadamente metade dos requerimentos analisados viram benefícios de fato, essa diminuição da fila teria representado um aumento no estoque de benefícios de 134 mil.

Se voltarmos à Tabela 3, veremos, na última linha da coluna (G), que o aumento do estoque de benefícios previdenciários entre abril/23 e janeiro/24 foi de 1.405 mil. Logo, a redução da fila teria contribuído com apenas 9,5% (134/1.405) do aumento do estoque de benefícios no período.

Vejamos agora a fila do “auxílio incapacidade temporária” (auxílio doença), que é objeto do Atestmed e, portanto, deveria apresentar uma consistente redução, pela aceleração na análise e liberação de processos pendentes. A redução da fila foi de apenas 19 mil requerimentos. Usando a regra de bolso de que metade vira benefício de fato, teríamos um acrescimento no estoque de benefícios de 9,5 mil.

Mais uma vez voltando à Tabela 3, vemos que o aumento no estoque de benefícios do auxílio-doença entre abril/23 e janeiro/24 foi de 295 mil. Logo, a redução da fila teria contribuído com apenas 3% do aumento do estoque (9,5/295)

O que esses números indicam é que a fila parece estar caindo devagar, não explicando o forte incremento recente das concessões. Isso indica que estamos mais provavelmente no cenário (b) da seção anterior: a fila não cai proporcionalmente ao aumento das concessões, porque os requerimentos de benefício estariam crescendo e/ou haveria maior proporção de requerimentos aprovados quando do uso dos métodos expressos e automáticos de análise.

Isso determinaria um aumento duradouro na taxa de crescimento de concessões e, portanto, da despesa, sem queda significativa da fila de requerimentos no longo prazo.

Não estaríamos apenas passando por um breve período de normalização de benefícios represados, mas sim mudando para um cenário permanente de mais requerimentos e mais aprovações.

O governo tem argumentado que a automação da análise de requerimentos permitiria deslocar os peritos para a análise de outros benefícios de maior custo e complexidade.

Neste caso, mesmo com um aumento permanente na taxa de crescimento dos benefícios sujeitos a exame automatizado, haveria, no futuro, maior filtro e redução na concessão de aposentadorias e outros benefícios de maior valor, compensando o aumento de despesa. Restaria aguardar para ver os resultados.

A pressão sobre a despesa em 2024

Estimamos para 2024 despesa de, pelo menos, R$ 923 bilhões para o RGPS e R$ 109 bilhões para o BPC, já descontando o pagamento antecipado de precatórios de 2024 feito em 2023.

Ocorre que o orçamento deste ano só prevê R$ 909 bilhões para o RGPS e R$ 103 bilhões para o BPC. Haveria, portanto, uma insuficiência orçamentária de, no mínimo, R$ 20 bilhões.

Em algum momento, ao longo do ano, será preciso cortar outras despesas para acomodar o gasto do RGPS e BPC dentro do limite total de despesas do arcabouço fiscal.

Trata-se de valor significativo, que consumiria quase todo o limite máximo de contingenciamento que o governo admite fazer (R$ 23 bilhões).

Isso indica que o cumprimento do limite de despesa do arcabouço em 2024 não é trivial. Deve haver pressão para flexibilizá-lo, o que prejudicará também o resultado primário e a credibilidade do arcabouço. Como a pressão sobre o RGPS e o BPC continuarão nos próximos anos, o estímulo para mexer na regra fiscal é ainda maior.

Conclusões

As despesas com benefícios do RGPS e do BPC em 2024 estão crescendo em ritmo forte e ficarão, pelo menos, R$ 20 bilhões acima do montante orçado na Lei Orçamentária.

Isso exigirá corte em despesas discricionárias de difícil aprovação na arena política e deve gerar pressão pela flexibilização do limite de gastos do arcabouço. O próprio Presidente da República já vem falando em ampliar o limite de gastos.

A pressão continuará nos próximos anos, pois os fatores de aceleração na despesa do RGPS e BPC vieram para ficar. A percepção desse cenário duradouro será reforço ao incentivo para mudar a regra fiscal.

A aceleração nas despesas do RGPS e do BPC decorrem da política de aumentos reais do salário mínimo, tem pouca relação com o esforço do governo para reduzir a fila de requerimentos, e parece ser impulsionada pelo crescimento nos requerimentos de novos benefícios e/ou pela maior leniência dos novos critérios automáticos de concessão.

A solução do problema passa por rever a regra de correção do SM, por fechar brechas nas regras de concessão de benefícios que dão margem a judicialização, por calibrar os critérios de concessão nos processos automatizados para evitar leniência, e por uma mudança nos requisitos de acesso aos benefícios para que eles sejam compatíveis com a restrição orçamentária no médio e longo prazo.

O otimismo com o bom desempenho da receita no início do ano precisa ser temperado com o cenário adverso do lado da despesa.

Marcos Mendes é doutor em economia e pesquisador associado do Insper.

Rogério Nagamine Costanzi é doutor em economia.

[1] Portaria Conjunta/MC/MT/INSS n. 14, de 7/10/21

[2] Portaria Conjunta MPS/INSS n. 38, de 20/7/23

[3] Portaria MPS n. 674, de 5/3/24

Link da publicação: https://braziljournal.com/opiniao-o-que-esta-acontecendo-com-os-gastos-da-previdencia-e-do-bpc-2/

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

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Marcos Mendes