Folha
Foi no início da minha adolescência que minha mãe, com sua didática habitual, explicou-me o sentido da expressão “o espírito do tempo”. Naquele princípio dos anos 1970, a expressão —que soava ainda mais sedutora na sua forma original alemã, “Zeitgeist”— pareceu-me não apenas fascinante mas também acolhedora e benevolente.
Afinal, aos meus olhos, o ambiente intelectual, cultural e moral da época era dominado pela oposição à ditadura, pelas canções de protesto de Geraldo Vandré e Chico Buarque, pela Tropicália e ainda —algo paradoxalmente— por uma ideia de Brasil destinado à grandeza. Eu era capaz de identificar-me com todas essas manifestações e sentia-me assim perfeitamente integrado ao espírito do meu tempo.
Mais tarde, quando os tempos evoluíram para a anistia, a volta dos exilados, livros como “O que é isso, Companheiro?”, de Fernando Gabeira, a abertura democrática e o movimento das Diretas Já, renovei o meu sentimento de conformidade com as ideias contemporâneas.
Acredito que essas “primeiras impressões” cristalizaram em minha mente o conceito, não revisitado, do “espírito do tempo” como algo estruturalmente positivo.
O excelente filme “Ficção Americana”, ganhador do Oscar de melhor roteiro adaptado, traz à tona o caráter opressivo de que o espírito do tempo pode se revestir, para aqueles cuja produção intelectual não siga seus ditames.
Parêntese: não considero eventuais spoilers muito prejudiciais neste caso, seja porque não se trata de um thriller com grandes suspenses e surpresas, seja porque o aspecto que abordo, embora central, é apenas o invólucro do multifacetado drama humano, que o filme retrata com grande sensibilidade.
Thelonious Elisson, “Monk”, é um escritor negro de meia-idade, cujos livros de tendência acadêmica e erudita encontram pouca receptividade no público. Sua origem privilegiada fica evidente pela espaçosa casa de sua família e por ter estudado em Harvard, como se deduz de uma flâmula na parede de seu quarto.
Em meio às dificuldades para editar seu livro mais recente, depara-se em uma feira literária com o estrondoso êxito de uma escritora iniciante, como ele negra e privilegiada, cujo livro, “Nóis Mora no Gueto”, repleto de clichês, denuncia a desigualdade racial.
Furioso com a rejeição ao seu trabalho, escreve, sob pseudônimo e impulsivamente, um romance banal, com o mesmo cunho racial, levando ao paroxismo o uso de lugares-comuns e situações previsíveis.
Nesse ponto do filme tive a sensação clara de que a arte imitava a vida, ao me lembrar do escritor francês Romain Gary.
Gary, judeu nascido no império russo em 1914, emigrou com sua mãe para Nice aos 14 anos de idade e lá, enfrentando todos os preconceitos reservados aos imigrantes, em geral, e aos judeus, em particular, tornou-se aviador e, após a rendição, em 1940, juntou-se à “France Libre” do general De Gaulle. Foi durante a guerra, nos intervalos de suas missões em aviões bombardeiros, que escreveu seu primeiro romance de sucesso: “Educação Europeia”, ambientado no movimento de resistência polonês.
Tornando-se diplomata após a guerra, manteve sua produção literária, chegando a ganhar o maior prêmio da literatura francesa, o Goncourt, em 1956, com o livro “Raízes do Céu”, considerado por muitos o primeiro romance ecológico da história contemporânea.
Esse êxito, no entanto, não o protegeu da agressividade dos críticos. Quinze anos e vários livros depois — entre os quais o belíssimo “Promessa ao Amanhecer”—, Gary era atacado por todos os lados.
A direita, lembrando sempre sua condição de estrangeiro e judeu, insistia que seu francês era medíocre, chegando mesmo a alimentar o boato de que seus editores haviam contratado secretamente Albert Camus, para corrigir o manuscrito de “Raízes do Céu”.
Já a esquerda, que domina a cena cultural da época, o condena por considerá-lo ligado ao poder gaulista. Essa postura ainda se agravaria após as críticas de Gary ao “nouveau roman”, estilo dominante na época, em um livro publicado em 1965 (“Pour Sganarelle”).
É nesse ponto que as histórias de Monk e Gary se sobrepõem. Assim como o americano, Gary começa a escrever sob o pseudônimo de Emil Ajar, sem, contudo, abandonar a produção sob seu próprio nome.
Uma cena do filme transmite com clareza o dilema de Monk. Ele entra em uma grande livraria e pergunta se há livros de Thelonius Elisson, seu nome verdadeiro. O atendente, após consultar uma lista, leva-o à estante onde estão os seus livros; Monk olha para a placa de designação que diz “estudos afro-americanos”. Furioso, tenta carregar seus livros para uma estante que reflita adequadamente seu conteúdo.
A cena deixa claro que o “lugar de fala” de Monk está restrito à sua negritude e aos temas ditados pelo espírito do nosso tempo.
Da mesma forma, Gary, em seu livro póstumo “Vida e Morte de Emil Ajar”, no qual revela a identidade do autor, atribui a iniciativa de escrever sob pseudônimo à “má caricatura de si, que lhe haviam feito” (“la gueule qu’on lui avait faite”). A única forma de livrar-se do espectro de “escritor em fim de percurso” seria forjar-se uma nova imagem.
As semelhanças não param aí. A banca de avaliação do Goncourt, ignorando a real identidade de Emil Ajar, concede o prêmio de 1975 ao seu “A Vida pela Frente”, tornando Gary o único escritor a ter ganho o prêmio duas vezes, situação vedada pelas regras do concurso.
Do mesmo modo, o livro “Fuck” (isso mesmo!), de Monk, previsivelmente vence um importante concurso literário.
O que diferencia as duas histórias é que, enquanto Monk despreza o livro escrito sob pseudônimo, Gary orgulhava-se por ter elaborado uma escrita mais leve e livre, embora as ideias centrais e mesmo algumas expressões características sejam as mesmas de seus livros autorais.
Quase 40 anos após seu suicídio, em 1980, a obra de Gary foi incluída na “Pléiade” da editora Gallimard, o panteão dos escritores franceses.
Para as obras dos autores aclamados em vida, resta sempre o desafio de resistir à evolução do espírito do tempo. Já para alguns —muito poucos— dos autores que não têm a mesma sorte, é justamente essa evolução que permite o reconhecimento pleno de sua qualidade.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2024/04/a-opressao-do-espirito-do-tempo.shtml
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