Enquanto não soubermos como melhorar a produtividade e a qualidade da educação, vamos alternar ciclos em que a renda cresce continuamente com períodos recessivos de ajustamento
Valor
O IBGE publicou na semana passada os resultados da Pnad Contínua anual, com dados de rendimentos de todas as fontes dos brasileiros, que nos permitem calcular medidas corretas da renda, pobreza e desigualdade, sem simulações e/ou imputações. Os dados mostram um grande aumento da renda média e queda acentuada da pobreza em 2023. Será que estamos começando um novo ciclo de aumento do padrão de vida dos brasileiros? Será que este ciclo será sustentável?
A figura mostra o crescimento da renda per capita real nos últimos 47 anos e o comportamento do valor real do salário mínimo (SM) no mesmo período. Podemos notar que no período inicial, entre 1976 e 1993, que coincide com o fim da ditadura militar e redemocratização no país, praticamente não houve aumento de renda per capita, que permaneceu em torno de R$ 1.000, apesar da grande flutuação em 1986, quer ocorreu devido ao Plano Cruzado, que fracassou.
Entre 1993 e 1995, a renda aumentou 30% devido ao Plano Real, que está fazendo 30 anos agora. Mas, entre 1995 e 2003, a renda ficou basicamente estagnada. Entre 2003 e 2016 a renda per capita aumentou cerca de 60%, trazendo grande melhoria no padrão de vida dos brasileiros, que não foi revertida nem com a grave crise de 2014. Entre 2016 e 2022, a renda ficou basicamente estável, apesar da grande flutuação que ocorreu devido à pandemia. Finalmente, em 2023, os novos dados mostram um aumento de renda real de 11,5%.
Um novo ciclo de crescimento da renda real pode estar começando, parecido com o que ocorreu entre 2003-2016. Mas será que desta vez este ciclo será sustentável? Para sabermos a resposta, precisamos primeiro notar que, no curto prazo, a renda real dos brasileiros depende em grande parte de três fatores: do valor real do SM, das transferências do Bolsa Família e do aquecimento do mercado de trabalho. No longo prazo, o crescimento da renda está intrinsicamente ligado ao crescimento da produtividade.
O grande aumento do SM nos últimos 20 anos provocou uma forte compressão da distribuição de salários, de forma que uma grande parcela dos trabalhadores hoje em dia recebe entre um e dois salários mínimos. Mais especificamente, dos 100 milhões de trabalhadores, 12 milhões recebem exatamente um SM e 48 milhões recebe entre 1 e 2 SM. Se levarmos em conta as famílias destes trabalhadores, aproximadamente 110 milhões de brasileiros são afetados quando o SM aumenta.
Mas, além do seu impacto direto sobre a remuneração, o SM também é o indexador das aposentadorias e do BPC. Em torno de 35 milhões de pessoas são impactadas desta forma. Assim, descontando a dupla contagem, cerca de 125 milhões de brasileiros têm sua renda domiciliar per capita diretamente influenciada pelo SM.
Nosso problema maior é não saber como elevar a produtividade e melhorar a educação de forma sustentada
Entre os demais, uma parte está no setor informal e depende do Programa Bolsa Família (PBF), que atualmente atinge 24% das famílias brasileiras, que equivalem a 50 milhões de pessoas. Assim, dos 215 milhões de brasileiros, cerca de 150 milhões dependem do salário mínimo, do PBF ou de ambos. Os outros 65 milhões vivem em famílias chefiadas por trabalhadores que ganham mais do que dois salários mínimos ou por empresários que vivem de juros, lucros e dividendos.
A figura mostra como o aumento de renda real varia com o valor real do salário mínimo. O SM perdeu quase metade do seu valor real no período do fim da ditadura e redemocratização, o que parece explicar parte da estagnação da renda real no período. Vale notar que o SM não tinha tanto impacto na renda dos trabalhadores naquela época como tem hoje em dia. Entre 1995 e 2004, os aumentos do SM não foram suficientes para aumentar a renda, devido ao fraco desempenho do mercado de trabalho. Mas, entre 2004 e 2016, o valor do SM aumentou quase 80%, o mesmo aumento da renda real dos mais pobres. A partir de 2014, a crise econômica e a estagnação do SM provocam estagnação da renda real, processo que começa a ser revertido agora.
Mas será que é possível aumentar a renda real dos brasileiros somente aumentando o SM e o PBF, sem ter como contrapartida aumentos de produtividade? Aumentos de SM provocam muitas preocupações entre os economistas: desemprego, queda de lucratividade das firmas, inflação e desajuste nas contas públicas. A preocupação com o desemprego já não é mais tão relevante, pois várias pesquisas acadêmicas modernas mostram que as empresas exercem poder de mercado para pagar salários abaixo da produtividade dos trabalhadores, exercendo o chamado “poder de monopsônio”. Nestes casos, aumentos no SM podem até aumentar o emprego.
A queda de lucros das empresas pode ser vista como mero resultado do conflito distributivo. Porém, aumentos seguidos no poder de compra dos trabalhadores, acima do crescimento da produtividade do trabalho, em algum momento começam a produzir inflação. Entre 2003 e 2014, por exemplo, o salário mínimo aumentou 5% ao ano, enquanto a produtividade cresceu apenas 2%. O “timing” das pressões inflacionárias depende de fatores externos, como o boom de commodities, mas a conta sempre chega. Além disso, os aumentos seguidos do SM e do PBF pressionam as contas públicas, provocando desconfiança na solvência do setor público, o que também pressiona a taxa de juros.
O nosso problema maior é que não sabemos como aumentar a produtividade da economia e melhorar a qualidade da educação de forma sustentada. Enquanto não tivermos estas respostas, vamos alternar ciclos em que a renda dos brasileiros cresce continuamente com períodos recessivos de ajustamento, em que a renda se estabiliza devido aos programas de transferências. É melhor do que nada, mas ainda está bem distante do país que gostaríamos de ser.
Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/salario-minimo-e-produtividade.ghtml
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