Presidente do BID afirma ser preciso estruturar bancos multilaterais para emergências
Valor
No auge da tragédia no Rio Grande do Sul, o presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Ilan Goldfajn, esteve no Brasil e anunciou um pacote de ajuda que pode chegar a R$ 5,5 bilhões.
Na sua visão, o episódio só reforçou a constatação que eventos climáticos extremos já se tornaram frequentes. Por isso, além de agir de forma emergencial, é preciso estruturar os bancos multilaterais para atuar em emergências climáticas. Cheias no Rio Grande do Sul, ou a grande seca que afetou a Argentina e o Uruguai no ano passado são apenas exemplos de como toda a região tem sido afetada por eventos climáticos.
A estrutura de contingência tem três instrumentos, explicou ele: linhas de crédito, empréstimos que podem ter o pagamento suspenso diante de emergências climáticas moderadas e “bônus de catástrofe”, que envolvem o perdão das dívidas em casos extremos.
Em outra frente, ele diz que as obras para a reconstrução devem elevar a resiliência dos locais a eventos climáticos.
Um segundo tema que trouxe Ilan ao país é o apoio dado pelo banco à presidência brasileira do G20, tema de uma reunião com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
Coincidentemente, o BID preside no momento um grupo de dez bancos multilaterais de crédito. Um dos temas impulsionados pelo Brasil é a reforma na atuação dessas instituições. Em abril, esse grupo de bancos anunciou medidas para atuarem como um sistema. Entre os objetivos, está elevar os financiamentos em US$ 300 bilhões a US$ 400 bilhões na próxima década.
O próprio BID quer ampliar a oferta de crédito em US$ 150 bilhões no período. Uma iniciativa nesse campo é o pedido apresentado ao Fundo Monetário Internacional (FMI) para que as reservas dos países na instituição possam ser utilizados pelos bancos multilaterais.
Outra iniciativa da presidência brasileira no G20 é o lançamento do pacto global contra a fome e a pobreza. Nesse tema, disse Ilan, o BID possui um banco de dados com as experiências na área que deram certo, como o Bolsa Família, e os que não tiveram tanto sucesso. É um conhecimento que pode ser colocado à disposição do mundo, disse o presidente.
A seguir, os principais pontos da entrevista ao Valor:
Valor: O senhor esteve aqui no Brasil no auge da tragédia do Rio Grande do Sul. O que esse episódio nos mostra?
Ilan Goldfajn: Mostra que a nossa prioridade, que é trabalhar a questão do clima, é muito importante. Um banco de desenvolvimento não pode ignorar esses impactos, porque há muitas repercussões sociais: as pessoas ficam deslocadas, voltam para a pobreza, perdem renda, perdem todo o seu patrimônio. Teve gente que perdeu a vida. São momentos dramáticos que vêm de um evento extremo. Que, infelizmente, tem ocorrido com frequência.
Valor: O sr. vê isso ocorrendo na região?
Ilan: Deixa eu lhe contar uma história. Eu cheguei aqui no banco e a minha impressão era que o impacto climático se manifestava no Caribe, na América Central: os furacões, o impacto das ilhas que eram devastadas. O que eu não tinha tanta clareza é que isso ia se espalhar pela toda a região. Desde que eu entrei, tivemos a pior seca no Uruguai e na Argentina. Faltou água em Montevidéu, o que nunca tinha acontecido. A Argentina, um país que não tinha dólares, perdeu US$ 15 bilhões. Houve incêndios no Chile, um furacão que devastou Acapulco, no México. Esses eventos vão ser recorrentes, com custo elevado, Um banco de desenvolvimento tem que se preparar para ajudar a região a lidar com isso.
Valor: Como?
Ilan: Tem duas formas de fazer isso. Uma é o médio prazo. Vamos reduzir a emissão, usar energia renovável, trabalhar a Amazônia para Sempre, que é o nosso programa. Mas a gente tem que colocar também ênfase na adaptação, na resiliência física e financeira.
Nossa prioridade [no BID], que é trabalhar a questão do clima, é muito importante”
Valor: O governo brasileiro está dialogando com organismos multilaterais para buscar uma solução estrutural para emergências climáticas. Isso coincide com a agenda do BID, não? Como seria?
Ilan: Precisamos pensar em como estabelecer um sistema contingente. Um sistema que a gente bola antes, para estar preparado quando o evento ocorrer. Dividir o risco em três: nas grandes catástrofes, perdoamos a dívida. Nos eventos intermediários, alongamos. Temos linhas que podem ser postergadas por dois anos. E os normais, uma linha de crédito. Então, dependendo do tamanho da catástrofe, podemos interagir.
Valor: Perdoar a dívida?
Ilan: Podemos trabalhar com o Estado ou com o governo federal para emitir os bônus de catástrofe. É aquele em que existe uma dívida. Mas, se ocorrer uma catástrofe, a dívida desaparece.
Valor: E do lado físico?
Ilan: Vamos trabalhar a reconstrução de uma forma resiliente. Colocando a infraestrutura que pode aguentar muito mais enchente, muito mais furacão.
Valor: E esses instrumentos poderão ser usados no Rio Grande do Sul, ou eles ainda estão sendo elaborados?
Ilan: Temos de pensar de uma forma estrutural. O que aconteceu no Rio Grande do Sul pode ter impacto em outros lugares. Precisamos organizar para a frente. Em termos de Rio Grande do Sul, vamos trabalhar de duas formas.
Valor: Quais?
Ilan: Colocamos R$ 1,5 bilhão para coisas que já existem, desde linhas de ajuda a pequenas e médias empresas, realocações de projetos, ajuda humanitária, contratar gente para organizar a reconstrução. E, além disso, mais R$ 4 bilhões como potencial para pensar o futuro da reconstrução no Rio Grande do Sul de forma resiliente.
Valor: O sr. já declarou que pretende ampliar em US$ 150 bilhões, na próxima década, o volume de recursos à disposição dos países. Como obter esses recursos?
Ilan: O BID, recentemente, teve aprovadas três mudanças relevantes. Uma delas é a capitalização do BID Invest em um novo modelo. É uma capitalização de US$ 3,5 bilhões. Basicamente, duplica os recursos do BID Invest, que é o braço privado que temos para ajudar as empresas.
Valor: Serve para o Rio Grande do Su?
Ilan: Estávamos agora reunidos com o BRDE [Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul]. Falando sobre como podemos ajudá-los. E uma das coisas discutidas foi o BID Invest. Uma parte do R$ 1,5 bilhão que mencionei é linhas de crédito via BRDE. Mas, além disso, o BID Invest pode ajudar o próprio banco BRDE. Se ele tem mais liquidez, mais garantias, pode alavancar mais. O Brasil é o maior cliente do BID e do BID Invest. Então essa capitalização, eu diria que é uma ótima notícia para o mundo, melhor ainda para a região e para o Brasil.
Valor: Qual a segunda mudança?
Ilan: Teve uma aprovação de US$ 400 milhões para o BID Lab, que doa para startups. É muito importante para o Brasil.
Valor: E a terceira?
Ilan: É a aprovação da nossa nova estratégia para frente. São reformas relevantes, que fazem aumentar a escala do que estamos fazendo. E aí entram recursos. São instrumentos tanto de inovação financeira para alavancar mais, como usar nosso próprio balanço da melhor forma. São instrumentos para melhorar o nosso balanço, como os SDR [Special Drawing Rights, “moeda” do Fundo Monetário Internacional]. E há também formas de impactar melhor o que estamos fazendo, que é seletividade, efetividade, desenvolvimento.
Tudo está mudando. Não podemos continuar com as mesmas soluções de sempre”
Valor: Quando esteve no Brasil, o sr. esteve com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Do que trataram?
Ilan: O Rio Grande do Sul, a ajuda ambiental, a solidariedade, estes foram os grandes assuntos da viagem. O segundo assunto foi a nossa participação na presidência do G20. Estamos fazendo um esforço grande de apoiar o Brasil na presidência. Isso implica algumas coisas. No lado financeiro, a presidência do Brasil quer fazer um arcabouço de reformas dos bancos multilaterais. Quer sair com um guia para frente. Estamos ajudando porque somos um banco multilateral, temos experiência do que é prático fazer, do que realmente precisa. Aproveitamos que estamos na presidência dos bancos multilaterais, que são dez, para combinar um plano de reformas em conjunto. Esse é um lado.
Valor: E o que mais?
Ilan: O Brasil introduziu um tema muito relevante na agenda, que é o combate à fome e à pobreza. E vai lançar a aliança global contra a fome e a pobreza, que é uma bandeira do G20. Nós, aqui do BID, há anos fazemos programas sociais de combate à fome e à pobreza. Tem experiências que funcionam, como o Bolsa Família e o programa no México, e os que não funcionam. Temos um banco de dados de tudo que funcionou ou não na América Latina. E estamos oferecendo para a presidência do G20. Também falamos de um programa muito importante, que aumenta o financiamento do clima através da oferta de proteção cambial.
Valor: Com esse mecanismo de proteção cambial, o Brasil está preparado para receber mais investimentos?
Ilan: Eu acho que existem algumas áreas que estão mais prontas para receber investimentos e outras áreas em que é preciso trabalhar. O Brasil e a América Latina precisam se preparar para receber mais investimentos. Isso tem a ver com planejamento, mas também com regulação. Regulação, regras do jogo, estabelecer o ambiente de negócio que seja apropriado. Tem muita discussão na América Latina sobre segurança pública, crime organizado. E aqui eu não estou falando do Brasil só, estou falando mais da região. Temos um programa muito relevante de segurança pública no Equador.
Valor: Até que ponto as fragilidades macroeconômicas do Brasil são um embaraço aos investimentos?
Ilan: Quando eu falo com os investidores, eles sempre colocam que para eles a coisa mais importante é ter estabilidade. Estabilidade econômica, estabilidade de regras, estabilidade em termos de segurança. Eles nos pedem ajuda com, por exemplo, o risco de uma depreciação cambial além da conta, uma desapropriação de uma concessão, uma mudança de regra no meio do caminho que muda completamente a base de estrutura tributária.
Valor: Como avalia a situação macroeconômica do Brasil?
Ilan: O Brasil tem uma estabilidade. Tem desafios, mas tem uma estabilidade macroeconômica. Pela quantidade de reservas, por haver um Banco Central, um Ministério da Fazenda, um Ministério das Planejamento fazendo seu trabalho. Olhado de fora, dá para ver a floresta: vemos desafios, mas também vemos tudo o que foi conquistado nos últimos anos.
Valor: O Valor promoveu um evento sobre o programa Juros por Educação e o secretário do Tesouro, Rogério Ceron, disse que o BID vai atuar nele. Quais outras inovações o BID está fazendo aqui no Brasil?
Ilan: Tudo está mudando. Não podemos continuar com as mesmas soluções de sempre. Então, temos que inovar. Eu enfrentei sempre durante décadas a questão da flutuação do câmbio e como isso é um problema. Mas pela primeira vez estamos inovando e, se der certo, vamos aumentar o investimento em clima. Como? Oferecendo um hedge cambial com que os investidores se sentem mais à vontade. Temos sido líderes em operações de swap: trocar dívida por natureza, que foi o grande projeto do Equador. Em Barbados, dívida por proteção da água que falta lá. E a temos projetos de dívida por saúde em alguns países. Nos Juros por Educação, estamos oferecendo nossa forma de pensar. Mas está tudo muito preliminar, não há nada definido.
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