Sustentabilidade fiscal é condição necessária para a sustentabilidade, no tempo, da nossa rede de proteção social
Valor
Passados sete anos, o debate sobre a estratégia fiscal brasileira voltou ao que tínhamos no início de 2016: uma tendência, em boa medida incorporada na legislação, e reforçada por decisões do governo, de crescimento ininterrupto das despesas primárias se defronta com desafios para o crescimento das receitas, o que implica uma trajetória de avanço também ininterrupto da razão dívida-PIB. Como a dívida é predominantemente (95%) denominada em reais e detida por poupadores locais (90%), trata-se de um problema crônico, mas não agudo.
Ocorre que problemas crônicos que não são tratados tendem, mais cedo ou mais tarde, a apresentar sintomas mais graves. No caso brasileiro, um sintoma do problema fiscal crônico é o patamar de taxas de juros que tem se mostrado necessário para controlar a inflação. Um sintoma agudo seria a disparada da inflação, caso entremos na situação de dominância fiscal. A inflação é uma forma de ajuste, cujo custo recai sobre os poupadores e, em particular, as camadas mais vulneráveis da sociedade, dado que não só o valor dos investimentos em títulos do governo seria corroído, mas também o poder de compra propiciado pelos programas de transferência de renda.
Nesse contexto, um diálogo nacional sobre o perímetro da atuação estatal, e a efetividade da mesma, parece inadiável, independente da orientação ideológica do governo do dia, enquanto este tenha a preocupação com a capacidade do Estado em honrar seus compromissos e proteger os mais vulneráveis.
Alguns fatos devem balizar este diálogo. Em primeiro lugar, quanto ao lado das receitas, a estrutura tributária pode ser feita mais progressiva e simples. Mas não podemos escapar do fato que o país já tem uma carga tributária mais elevada que países em estágio similar de desenvolvimento – 32%, ante 21% na América Latina e 25% entre os mercados emergentes. Nesse contexto, ajuste pelo lado das despesas é inevitável, e não pode ser tabu – há evidências internacionais, ademais, que processos de ajuste pelo lado das despesas tendem a ser menos contracionistas do que aqueles baseados no aumento de receitas. Isso não quer dizer que subsídios no imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas devam ser perenizados sem avaliações periódicas sobre sua eficiência econômica. Ao contrário, uma revisão já deveria ter ocorrido.
E a estrutura das despesas do governo central é muito rígida e pouco sensível à evolução do ciclo econômico. Em primeiro lugar, cerca de 90% dos gastos primários do governo central são de natureza obrigatória – os principais a Previdência (42% do total) e o funcionalismo (17%). Além disso, os gastos com Educação e Saúde (12% do total) estão indexados às receitas, e são incomprimíveis: crescimento rápido, mas transitório, das receitas ocasiona um aumento permanente desses tipos de despesas.
Essa indexação é também incompatível com o próprio arcabouço fiscal recentemente implementado pelo governo, em que o crescimento real do limite de gastos é restringido a 70% do crescimento das receitas e a 2,5% ao ano, enquanto o gasto mínimo com essas rubricas sobe sem cerceamentos. É difícil desenhar uma estratégia coerente de ajuste que não passe pela revisão de algumas estruturas básicas da governança das despesas.
Ainda no lado administrativo, infralegal, é possível utilizar a tecnologia para facilitar a gestão dos programas de proteção social e coibir as fraudes – esse processo já está em curso. Por ora, a automatização tem predominantemente acelerado o processo de concessão de benefícios, mas presume-se que irá também oferecer ganhos de eficiência à frente, na gestão de programas como auxílio-doença, benefício de prestação continuada (BPC), aposentadoria por incapacidade permanente, etc.
Ao longo do tempo, programas de proteção social foram sendo introduzidos, sem que os anteriores tivessem sido descontinuados. Com isso, foi criada uma sobreposição importante de programas, que não raramente se dirigem ao mesmo público – abono salarial, BPC, FGTS, seguro-desemprego, aposentadoria rural, entre outros. A redução da sobreposição e consolidação, tanto quanto possível, desses programas propiciaria ganhos de eficiência sem prejuízo para a efetividade da nossa rede de proteção social. A agenda de revisão de gastos liderada pelo Ministério do Planejamento parece caminhar corretamente nessa direção.
Os temas mais difíceis, do ponto de vista político, são também os mais relevantes do ponto de vista econômico. Trata-se das vinculações de despesas ao salário mínimo e das vinculações de gastos com educação e saúde às receitas.
A alternativa ao diálogo e ajuste organizado não é o não ajuste, é o ajuste via inflação, que não vale a pena ver de novo
O governo adotou de forma permanente e prevista em lei uma política de aumentos acima da inflação para o salário-mínimo – a taxa de crescimento do PIB no segundo ano anterior, quando positiva. Essa política beneficia os trabalhadores de renda relativamente menor, mas sobretudo formais, tendo impacto fiscal elevado, dada a vinculação de despesas previdenciárias e de assistência social ao salário-mínimo.
Estima-se que para cada ponto percentual de aumento real do salário mínimo, a despesa previdenciária com Previdência, BPC e abono salarial cresça 0,7% (ou R$ 8 bilhões). Harmonizar a vinculação à regra do arcabouço, limitar a vinculação aos benefícios de assistência social (que são, por definição, para a parcela mais pobre) ou, em um caso extremo, desvincular o piso salarial do mercado de trabalho dos ativos do pagamento da aposentadoria dos inativos são possíveis caminhos para focalizar os ganhos distributivos da política de aumentos reais do salário-mínimo, mitigando o custo fiscal.
Finalmente, parece inevitável, em algum momento, rever certas vinculações de despesas, como as comentadas acima com Educação e Saúde, propiciando maior flexibilidade para os gestores públicos – note-se, por exemplo, que na medida em que a população envelhece, as demandas por gastos com saúde tendem a aumentar, ao passo que teremos menos crianças para educar, mas a transferência de recursos de educação para saúde está, no regime atual, vedada. Trata-se de agenda de reconhecida dificuldade política, mas nem por isso menos relevante.
Não raramente a preocupação com os gastos e a eficiência da atuação do governo são atacados como uma defesa do chamado “Estado mínimo”. Isso pode ser um artifício para tentar interditar o debate, mas não leva em conta o fato básico que a preocupação com a sustentabilidade fiscal não se esgota nas planilhas da evolução da dívida pública. Sustentabilidade fiscal é condição necessária para a sustentabilidade, no tempo, da nossa rede de proteção social. A alternativa ao diálogo e ajuste organizado não é o não ajuste, é o ajuste via inflação, que não vale a pena ver de novo.
Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/o-dialogo-inevitavel.ghtml
As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.