Folha
Lula escolheu inverter o ciclo político da despesa pública. Iniciou o mandato com pé no acelerador do gasto. Foi escolha altamente arriscada.
A submissão da economia à política se justificou pela percepção do presidente de que, em um país polarizado, não havia espaço para quedas acentuadas de popularidade no início do mandato. Era necessário criar as condições para chegar vivo em 2026, mesmo que com a economia capengando.
O primeiro ano transcorreu melhor do que a encomenda. A forte desinflação na economia americana, com a perspectiva de início de um ciclo de corte de juros já em março passado, e o sucesso de Haddad na tramitação da agenda econômica explicam o bom humor do fim de 2023.
Tudo sugeria que Lula conseguiria navegar relativamente bem através das inconsistências do arcabouço fiscal (tratei das inconsistências na coluna de 11 de maio).
Legaria uma difícil herança —elevação da dívida pública em 10% do PIB, aproximadamente—, mas conseguiria se reeleger.
Já era possível divisar Lula 4 parecido com FHC 2: um governo sequestrado por uma agenda fiscal pesadíssima. A transição política ficaria para 2030.
A piora da inflação americana no primeiro trimestre do ano azedou bem o ambiente externo. Por aqui, há sinais de esgotamento da agenda de ajuste fiscal pelo lado do aumento de impostos.
Caiu a ficha para o mercado e para governo de que as inconsistências do arcabouço —indexação do gasto de saúde e educação na receita, em vez de no gasto total, e indexação do salário mínimo no PIB absoluto, em vez de ser em uma medida de produtividade do trabalho— inviabilizarão o regime fiscal antes do que se imaginava.
O câmbio andou. Fechou esta sexta-feira (14) a R$ 5,38. Modelo de decomposição sugere que a desvalorização de 4,5% que houve entre o final do ano passado até meados de maio, quando o dólar rodou a R$ 5,15, deve-se majoritariamente a fatores externos. No entanto, a desvalorização adicional que levou o câmbio à vizinhança de R$ 5,4 é integralmente doméstica.
Além das dúvidas sobre a capacidade de funcionamento do arcabouço fiscal, há as incertezas com a transição na direção do Banco Central.
Possivelmente, para chegar inteiro a 2026, com chances de se reeleger ou de eleger seu sucessor, Lula terá de fazer algo de mais estrutural na política fiscal.
Assim, me parece que a questão se apresenta de uma forma diferente dos termos estabelecidos por meu colega Celso Rocha de Barros em seu espaço na Folha no sábado (7) passado.
Celso argumenta que é difícil Lula fazer as mudanças que a direita e os liberais pedem quando esses se aproximam de políticos cuja credencial democrática não é clara.
Como apontou Fernando Dantas na quinta-feira (13) no seu blog no portal do jornal Estado de S. Paulo, foi Lula quem criou os problemas: era possível aprovar a emenda constitucional da transição sem reindexar saúde e educação na receita e era possível escolher outro indexador para o salário mínimo. Não é de todo descabido que a direita não deseje arcar com custo político de reverter decisões de Lula.
Independentemente do que é certo ou errado, o cálculo político de Lula olha prioritariamente as condições de manutenção de seu projeto político no poder. O que é importante ou não para o país vem em seguida.
E, talvez, para que o risco de transição política em 2026 não seja muito elevado, Lula terá de fazer agora algumas reformas que imaginava pautar em Lula 4.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2024/06/lula-3-tera-de-corrigir-a-rota.shtml
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