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Folha

“Quando trabalhamos com clima, acabamos nos acostumando a repetir as coisas, pois ninguém parece ouvir na primeira vez.”

A frase de Steven Chu, Nobel de Física e secretário de Energia dos EUA no governo Obama, ajudou-me a vencer minhas resistências em voltar ao tema do aquecimento global. Mesmo porque, a cada volta, apreende-se algo novo, que pode valer a pena compartilhar.

As imagens da tragédia no Rio Grande do Sul e a consciência de que boa parte das famílias desabrigadas não tem para onde retornar —porque, ainda que seus lares não tenham sido destruídos, a perspectiva da repetição das inundações desencoraja qualquer esforço de recuperação— tornaram indiscutível a ideia de que a necessidade de investimento em adaptação às mudanças climáticas é tão importante quanto o esforço para sua mitigação.

Explico. Até então, eu acreditava que o essencial era combater a causa raiz do aquecimento global, através da redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE), até atingirmos globalmente o net zero, em 2050.

Eu via a preocupação com a adaptação às mudanças climáticas quase como uma atitude diversionista ou protelatória, que enfraqueceria nossa determinação em evitar o aquecimento global acima de 1,5ºC. Eu estava errado.

(Hoje comparo essa ideia ao comportamento dos estudantes membros da Libelu nos anos 1970, que condenavam qualquer ação social “assistencialista”, na medida em que —ao atenuarem o sofrimento do proletariado— enfraqueciam a disposição revolucionária.)

A perspectiva de que fenômenos climáticos extremos como as inundações no Sul, ou os incêndios no pantanal, terão frequência e intensidade crescentes nos obriga a planejar e investir decisivamente em medidas de adaptação a seus impactos.

O professor de Columbia Harrison Hong (citado por Marcos Lisboa em sua coluna na semana passada), em palestra recente no Insper, defendeu com argumentos convincentes que países que invistam mais em infraestrutura para fazer frente aos extremos climáticos elevarão suas perspectivas de crescimento em ao menos 1% ao ano.

Decorre dessa afirmação a necessidade premente de capitalização do fundo para as nações mais pobres, anunciado na abertura da COP28, em Dubai, cujos recursos hoje ainda são pouco mais que simbólicos.

Na falta desse apoio, os próximos anos verão um aprofundamento do fosso que separa esses países do mundo desenvolvido, com o consequente agravamento da crise humanitária e seus impactos migratórios.

E quanto à redução das emissões e à contenção do aquecimento a 1,5ºC?

Nesse ponto, as notícias são ruins ou, na melhor das hipóteses, conflitantes.

Por um lado, a comunidade científica eleva o tom dos seus alertas, ante a incapacidade dos líderes globais de pactuar regras que levem à redução sustentada das emissões de GEE.

Em uma recente pesquisa do jornal inglês The Guardian com 350 cientistas do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU, na sigla em inglês), 77% acreditam que as temperaturas se elevarão em 2,5ºC, ou mais.

Se com 1,5ºC já assistimos a uma série inédita de eventos gravíssimos, a perspectiva de atingir os 2,5ºC faz temer pelo mundo em que nossos filhos e netos viverão.

Por outro lado, há uma série de perspectivas alvissareiras, com avanços tecnológicos e tomada de consciência por parte de pessoas, empresas e países, que talvez permitam sonhar com uma reversão de tendência e redução acelerada das emissões.

Procuro encontrar alento na frase do economista R. Dornbusch, que pode se aplicar além do campo econômico: “(Em economia), as coisas demoram mais a acontecer do que você pensa, e então ocorrem mais rápido do que você imaginava”.

(O leitor atento observará que a frase acima, como uma faca de dois gumes, pode aplicar-se tanto à redução das emissões quanto ao agravamento dos eventos climáticos. É o que temos.)

O sinal mais preocupante, contudo, é a postura impassível da indústria petroleira global, que parece ignorar completamente seu impacto sobre a crise climática, limitando-se a investimentos marginais em energia renovável e a um discurso vazio sobre transição energética.

Tudo isso enquanto ampliam a exploração de novas áreas e anunciam, apenas nos últimos meses, aquisições cujos valores de mais de US$ 75 bilhões só são justificáveis em um cenário de manutenção do consumo de combustíveis fósseis.

Um exemplo claro dessa “cegueira deliberada” encontra-se na prestigiada carta anual da Berkshire Hathaway, do grande investidor Warren Buffett. Neste ano, Buffett discorre sobre a frustração de seus investimentos de longo prazo em distribuição de energia elétrica.

Essa atividade muito estável, que historicamente permite uma margem de ganhos modesta, mas constante, está ameaçada pela recente multiplicação de incêndios florestais e pela consequente exposição das empresas de energia a ações legais bilionárias, que buscam atribuir-lhes corresponsabilidade nos sinistros. Buffett chega a cogitar abandonar os investimentos nessa área, ao afirmar que não colocará “dinheiro bom sobre dinheiro ruim”.

Não haveria nada a estranhar nas afirmações acima, não fosse o fato de o investidor, na mesma carta, enaltecer as perspectivas de lucro de sua participação na Occidental Petroleum. Nenhuma relação é estabelecida entre o aumento na ocorrência de incêndios e o aquecimento decorrente das emissões do petróleo. Todo ganho com combustíveis fósseis é considerado louvável, e as perdas decorrentes do seu consumo devem ser arcadas pela sociedade.

Diante da gravidade dos alertas dos cientistas, da evidência dos acidentes “socioambientais”, dos custos e dos riscos crescentes impostos à sociedade e do imobilismo dos principais responsáveis —sejam estes agentes privados, sejam públicos—, parece ser mesmo necessário repetir, repetir, repetir.

Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2024/06/repeticao.shtml

As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.


Sobre o autor

Candido Bracher