Folha
Acaba de ser publicado pela Companhia das Letras “Por que a democracia brasileira não morreu?”, de Marcus André Melo e Carlos Pereira.
Os autores apresentam a interpretação neoinstitucionalista do funcionamento do sistema político brasileiro e, em seguida, investigam dois momentos: o impedimento da presidente Dilma e os riscos de retrocesso democrático com Bolsonaro. O livro termina com uma análise do terceiro mandato de Lula.
Os autores argumentam que o presidencialismo multipartidário brasileiro tem diversas instâncias decisórias com poder de veto: Congresso muito fragmentado, fruto de voto proporcional em distritos grandes; bicameral; uma Constituição Federal muito detalhada; a Suprema Corte tem inúmeras atribuições e forte poder de revisão legislativa; três níveis da Federação, entre outras.
Para contrabalançar a dificuldade decisória, a solução foi dotar a presidência da República de inúmeros instrumentos, tais como: medida provisória; grande espaço para vetos; e papel central na confecção do orçamento e na execução da parte discricionária.
Finalmente, para que uma presidência muito forte não decaia em tirania, a Constituição Federal legou inúmeros poderes para os órgãos de controle: Judiciário, Ministério Público, Supremo Tribunal Federal, tribunais de conta etc. Esses órgãos, conjuntamente com uma imprensa livre e vigilante, constrangem arroubos iliberais da presidência da República.
A presidência da República tem dois tipos de instrumentos para passar a sua agenda no Congresso Nacional: compartilhar poder em torno de um programa de governo; e o varejo, isto é, liberação de emendas.
Em trabalho anterior, os autores mostram que presidentes que compartilham mais o governo empregam com menos intensidade o varejo. Isto é, os dois instrumentos de gestão da coalização são substitutos e não complementares.
A interpretação dos autores do impedimento da Dilma contrasta com a de Fernando Limongi, resenhada aqui na coluna de 20 de maio de 2023.
Marcus André e Carlos consideram que o quarteto comum a processos de impedimento de presidentes —povo na rua, crise econômica, escândalo de corrupção e perda de apoio no Congresso— também explica o impedimento da presidente.
A tentativa de silenciar a operação Lava Jato, que de fato ocorreu, reconhecem os autores, desempenhou, no entanto, papel secundário. Nesse sentido, e divergindo frontalmente de Limongi, para os autores, o impedimento de Dilma acompanhou o livro-texto.
A explicação dos autores para a sobrevivência da democracia entre nós em tempos polarizados tem duas partes. Na primeira, documentam que casos de recessão democrática são muito mais incomuns do que o sugerido pelo alvoroço do debate público. O surpreendente seria se nossa democracia sucumbisse.
Na segunda parte, focam o desenho institucional. Nosso sistema político altamente “consociativo”, isto é, com inúmeros pontos de vetos, dificulta muito qualquer aventura autoritária. No caso específico de Bolsonaro, o STF desempenhou papel importantíssimo, descrito em detalhe, mas também o Legislativo defendeu a democracia. Bolsonaro não conseguiu aprovar nenhuma legislação que enfraquecesse o STF.
O livro termina argumentando que as dificuldades de Lula 3 se devem menos ao enfraquecimento da presidência da República que, de fato ocorreu nos últimos anos, e mais às dificuldades de gestão dos governos petistas.
Em função da distância ideológica entre o partido do presidente e a ideologia média do Congresso Nacional, as administrações petistas compartilham pouco o governo e, portanto, empregam excessivamente o varejo, com todas as instabilidades que seguem dessa opção de gestão.
Toda a análise do livro está amplamente calcada na literatura acadêmica da ciência política e tem um tom descritivo, e não normativo, em que pese certo otimismo dos autores sobre a funcionalidade de nosso sistema político. Leitura mais do que recomendada.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2024/06/por-que-a-democracia-brasileira-nao-morreu.shtml
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