Plano Real levou bancos a finalmente desenvolver modelo de negócios baseado no crédito, diz Roberto Setubal, do Itaú Unibanco
Valor
Roberto Setubal tinha 39 anos quando assumiu a presidência do Itaú – hoje, Itaú Unibanco -, em março de 1994. Pouco mais de três meses depois, enfrentaria o maior desafio de sua carreira, a chegada do Plano Real. A nova tentativa de debelar a inflação deu certo, mas exigiu a reinvenção do sistema financeiro. O modelo de negócios dos bancos locais, então baseado no fluxo de dinheiro que passava pelas instituições financeiras, minguou. Os bancos brasileiros foram obrigados a aprender a fazer o que os bancos fazem: dar crédito.
Nesse processo, muitos ficaram pelo caminho. Outros não só sobreviveram como foram consolidadores do setor. O Itaú é hoje o maior banco da América Latina, com R$ 2,8 trilhões em ativos.
Os anos de inflação, ao mesmo tempo, deixaram como legado positivo o sistema de pagamentos brasileiro, que na visão de Setubal é dos melhores do mundo.
Para o banqueiro, o sucesso do Plano Real deveu-se à demanda da população, à vontade política e à percepção de seus formuladores de que não bastava mudar a moeda. “Adotaram políticas macroeconômicas que deram sustentação ao plano”, diz Setubal, hoje copresidente do conselho e administração do Itaú.
Valor: O senhor se tornou presidente do Itaú em março de 1994, pouco antes do Plano Real. Como foi acompanhar esse momento?
Roberto Setubal: O Plano Real, para os bancos, foi um megaimpacto. A gente vinha de pelo menos dez anos de inflação alta. Isso levou os bancos a um modelo de negócios que se baseava no fluxo de dinheiro – pagamentos, recebimentos e tudo mais. Era a principal fonte de receitas e havia uma disputa para capturar esse fluxo. O overnight chegou a 3% ao dia. Imagina, 3% ao dia! Qualquer migalha que sobrava rendia muito para os bancos e fez com que desenvolvessem um supersistema de pagamentos. Ainda hoje, é provavelmente dos melhores do mundo, e agora veio o Pix e ficou melhor ainda. Foi um lado positivo talvez da inflação. De repente evaporou essa receita. A gente teve que virar banco mesmo e começar a emprestar.
Valor: Os bancos estavam preparados para essa mudança?
Setubal: O bancos não estavam preparados para fazer um volume gigantesco de empréstimos. A economia aqueceu muito naquele momento. Foi um choque a perda da receita, por outro lado teve uma megademanda de crédito que ajudou a compensar. Os bancos tiveram que fazer reduções de custos, fechar agências. Foi um período de ajuste muito grande. Só que teve um problema. A inflação começou a voltar, e o Banco Central botou o pé no freio. Aí a inadimplência subiu. Isso em 1996, 1997. Os bancos passaram de receita de inflação para receita de crédito para recessão.
Valor: Os que sobreviveram…
Setubal: Tinha bancos muito fragilizados antes do plano, e depois não conseguiram lidar porque a mudança foi muito drástica. Os que quebraram, praticamente todos, estavam descapitalizados. Havia claramente bancos muito fragilizados. Bancos que depois não sobreviveram: Econômico, Bamerindus, Nacional.
Valor: O que bancos como Itaú, Unibanco e Bradesco souberam fazer de diferente dos outros?
Setubal: A gente se preparou melhor. O Itaú, antes do Plano Cruzado, em 1986, chegou a ter quase 90 mil funcionários e a gente reduziu a 36 mil até o Plano Real. Coincidiu com uma melhoria da tecnologia muito grande, ATMs e outras coisas. O banco estava muito capitalizado, tinha capacidade de passar por tempos mais difíceis. Mas foi um vendaval muito grande. O Itaú chegou a rodar no prejuízo alguns meses depois do plano.
Valor: Como foi assumir o banco e logo depois vir o Plano Real?
Setubal: Foi um susto! Uma situação horrível. O banco vinha muito bem e de repente assumo com esse monte de problemas, caiu a rentabilidade brutalmente. Foi muito difícil. Por outro lado, o conselho sabia muito bem o que poderia acontecer, deu para administrar bem. Mas não deixa de ser estressante estar numa situação dessa sem saber exatamente como vai ser o futuro. Foi bem tenso.
Valor: Antes da introdução do real, houve uma transição com as URVs. Como esse período ajudou a preparar o caminho?
Setubal: Tinha a sensação de que havia grande chance de dar certo, mais que em vezes anteriores. Um aspecto que foi endereçado foi a questão dos bancos estaduais, que eram uma das fontes inflacionárias. Os Estados financiavam seus déficits em bancos estaduais, que não tinham tinha depósito suficiente para atender isso. Estourava a conta reserva no Banco Central. Tinha uma expansão monetária permanente, incontrolável, que tornava qualquer política monetária inócua. Tanto que o Plano Real já nasceu com a proibição de os governos tomarem dinheiro nos bancos estaduais. Ou pagavam suas dividas e podiam ficar com o banco ou tinham que capitalizar. A maioria não tinha condição de pagar nem de capitalizar, e a alternativa que o governo federal dava era ‘legal, me entrega o banco e renegocio sua dívida em 30 anos’. Foi um dos alicerces para o sucesso do plano. Isso mudou bastante o mercado financeiro porque vieram as privatizações. Ao mesmo tempo, a abertura para banco estrangeiro. Às vezes, as pessoas acham que foi um milagre, foi só a moeda e deu certo. É muito além disso. A grande qualidade do plano foi a ideia genial de indexar a moeda nela mesmo e depois se transformar na moeda. Mas teve uma série de outras questões junto.
Às vezes, as pessoas acham que foi um milagre, foi só a moeda e deu certo. É muito além disso”
Valor: Na privatização de bancos estaduais, o Itaú comprou Banerj (RJ), Bemge (MG), Banestado (PR) e BEG (GO). Como foi esse processo?
Setubal: O Banerj foi o primeiro. Era um banco péssimo, inacreditavelmente péssimo. Primeiro, o governo separou o banco ruim do banco bom. Foram privatizar o bom e não apareceu ninguém. Aí o governo deu garantias, fez um fundo para cobrir prejuízos previdenciários, trabalhistas e cíveis. O que ele botou para garantir os passivos era muito mais do que recebeu na privatização. Mas privatizar o sistema estadual era tão essencial na cabeça deles, e era mesmo, que fizeram um esforço gigantesco.
Valor: Para o Itaú, o interesse era ampliar a base de clientes?
Setubal: O Itaú sempre foi forte em São Paulo, mas no Rio, em Minas a gente era bem mais fraco. Foi uma oportunidade, que soubemos aproveitar, excepcional de fortalecer o banco nas áreas mais ricas do Brasil. Quando veio o Banerj, primeiro a gente mudou todos os sistemas para adotar a tecnologia do Itaú, ainda com a bandeira do Banerj. Tudo o que você podia fazer no Itaú podia fazer lá. Mas não abria nenhuma conta nova. Aí a gente começou a mudar a bandeira. Ia lá e botava a placa Itaú. No mesmo dia, já começava a abrir conta, gente entrando. Isso nos deu uma capacidade melhor de avaliar os bancos. Quando foi para o próximo leilão, tinha uma visão mais clara do potencial.
Valor: Houve alguma conversa de bastidor pedindo ajuda dos bancos na implementação do Real?
Setubal: Não teve isso. Houve medidas que o Banco Central adotou para ajudar os bancos a se reequilibrar. Primeiro foi liberar as tarifas, que eram controladas, foi importante. Houve redução de compulsório, uma série de medidas, mas dentro da regra do jogo.
Valor: No Plano Real, havia a percepção de que daria mais certo que as tentativas anteriores?
Setubal: O Plano Cruzado foi um susto tamanho que ninguém sabia avaliar. Foi um congelamento de preços, não teve medida adicional. Depois vieram Plano Verão, Bresser, e aí veio o Collor, complexo para burro. Também não deu certo porque não era um congelamento de preços, mas era um estrangulamento da liquidez, sem medidas de fundamento econômico que pudessem sustentar aquilo. O Real indexou a moeda, mas foi muito mais completo, talvez porque aprenderam com erros anteriores. Adotaram políticas macroeconômicas que deram sustentação. Indexar e não fazer nada não daria certo também.
Valor: Antes do real, o mercado de crédito era muito pequeno… Os modelos que os bancos usavam antes continuaram servindo?
Setubal: Estava tudo enferrujado. Empréstimo naquele momento era curtíssimo prazo. Era um mercado simples, com financiamento capital de giro fundamentalmente. Investimento, o BNDES no que podia fazia alguma coisa.
Valor: O que os bancos tiveram de fazer para se adaptar?
Setubal: Os bancos passaram a olhar o crédito como produto principal. Estava muito desorganizado e despreparado. Ninguém sabia dar crédito. Todo mundo meio que tentando sobreviver ali, apertando, ajustando. Mas eram técnicas bem rudimentares na perspectiva de hoje. Não tinha modelagem, ‘credit scoring’, nada.
Valor: A inflação impedia planejamento de longo prazo. Previdência não existia, investimento era no overnight. Como foi se adaptar a essa mudança de produtos?
Setubal: Foi surgindo aos poucos, e continua se sofisticando, com mais produtos. Hoje, o volume de fundos de investimento é uma loucura. Havia dois tipos de fundos, o de renda fixa, que era um fundo overnight, e fundo de ações. Era um sistema muito pobre.
Valor: Como era a tesouraria no período inflacionário mais tenso?
Setubal: Tinha muita coisa. Tanto é que tinha o Banco Garantia, que fazia grandes posições de câmbio, juros. Ganharam muito dinheiro. O Itaú nunca foi de tomar grandes posições. Não era uma fonte importante de receita e continua não sendo. Hoje, para tomar posição de tesouraria, a regulamentação de Basileia exige capital. Qualquer risco exige capital: de crédito, de mercado, operacional. Não existia isso. O capital dos bancos era determinado pela alavancagem com empréstimos. Tinha bancos extremamente agressivos, que, meu Deus, como podiam tomar uma posição desse tamanho. Hoje, é impensável. Tirou o cassino. Para apostar, tem que colocar dinheiro seu, não dos outros.
Valor: Depois do Real, vieram as crises do México e da Rússia, que trouxeram muita incerteza. Qual foi o impacto no setor?
Setubal: Foram tempos voláteis. Os bancos brasileiros, de forma geral, são muito conservadores. Lá fora, os bancos tinham posições maiores porque a volatilidade é menor. Aqui, como havia essa vulnerabilidade, os bancos sempre foram cuidadosos. Não tivemos maiores problemas. Evidente que vem recessão, crédito piora, sobem os juros. E o Brasil tinha pouca reserva, ficava muito vulnerável.
Valor: Nossas crises eram de balanço de pagamentos…
Setubal: No ano 2000, mais ou menos, teve uma grande mudança, que foi o tripé, e acho que continuaria válido, câmbio flutuante, superávit primário e meta de inflação. O câmbio flutuante e a meta estão aí e funcionam muito bem. Na época, se falava que não ia dar certo, câmbio flutuante no Brasil. Sem ter uma situação monetária funcionando era impossível fazer um câmbio flutuante.
Ninguém sabia dar crédito. Todo mundo meio que tentando sobreviver ali”
Valor: O sr. duvidou do câmbio flutuante?
Setubal: Não é que duvidava, a gente nunca viveu. Eu tinha dúvidas se aquilo funcionaria. A gente não tinha a experiência, o raciocínio de como funciona a interligação de câmbio com juros. Tudo isso a gente vai aprendendo.
Valor: Mas levou ao desenvolvimento do mercado…
Setubal: Fundamental. Se continuasse com inflação, veja a Argentina, não tem sistema financeiro, não tem poupança, não tem nada.
Valor: O Itaú esteve até há pouco tempo na Argentina, como era?
Setubal: Impossível. O banco lá é como a gente era aqui, prazo curtíssimo, empréstimo muito pequeno. Se não tem o mínimo de estabilidade, não acontece. [No Plano Real] o salário mínimo foi fixado em US$ 60. Era tão louco, lembro de programa de televisão, o cara perguntava ‘quanto custa um pão, quanto custa um carro, uma casa’. As pessoas não tinham a menor ideia. E aí todo mundo passa a ter um pouco de noção de preço.
Valor: O que ficou do sistema de pagamentos daquela época?
Setubal: Desde aquela época, você fazia um depósito em cheque em Manaus e tinha ele liberado no dia seguinte. Nos Estados Unidos, até hoje demora dias. Era um milagre. A gente até discutia se deveria continuar porque não era tão importante e era muito custoso para o Banco Central e para os bancos. Mas foi mantido e funciona bem. O Banco Central hoje regulamenta tudo isso adequadamente, e surgem novos problemas, lavagem de dinheiro, fraude, mas o sistema de pagamentos do Brasil é impecável.
Valor: Os bancos brasileiros sempre rodaram com gordura de capital em relação às exigências de Basileia. O sr. atribui esse comportamento ao histórico do país?
Setubal: Mais volatilidade, sem dúvida. Se olhar as agências de rating, para dar o mesmo rating de outro país elas exigem dos bancos brasileiros mais capital.
Valor: Ainda hoje?
Setubal: Não é que elas falam, mas você percebe. A volatilidade é muito alta, e mais risco precisa de mais capital para absorver choques. O custo de capital no Brasil é maior. O investidor também quer um retorno maior.
Valor: O BC chegou a convidar os bancos a comprar outros bancos para ajudar no plano?
Setubal: Ele [BC] nunca fez assim. Aceitava qualquer um que fosse lá interessado em conversar, isso sim. O Nacional talvez foi o banco mais complexo. Aquele rombo foi escandaloso, uma surpresa. O Nacional vinha crescendo muito no crédito, e chegou a passar o Itaú. Eu falava ‘como está crescendo tanto e como vamos acompanhar? No varejo não é, porque a gente perceberia. Deve ser no atacado’. Aí pegamos nosso pessoal para ir aos clientes grandes tentando entender qual o tamanho de crédito que o Nacional dava, e o Nacional não aparecia. Fiquei pensando que só podia ser nas estatais, que a gente não operava. Nunca imaginei que fosse uma fraude. Aqueles empréstimos não existiam. A supervisão do BC era falha.
Valor: Por quê?
Setubal: Estavam focados nos planos. Fazia plano econômico e o BC precisava ficar supervisionando para os bancos cumprirem. Gastava energia nisso em vez de supervisionar o funcionamento de um banco normal.
Valor: O que ficou faltando no Plano Real? A parte fiscal?
Setubal: A perna fiscal. Que não é o Plano Real, ele não se propôs a isso. O Brasil, em alguns momentos teve uma política fiscal, mas períodos curtos, relativamente. Então, estamos aí hoje.
Valor: O Brasil ainda tem uma taxa de juro real alta…
Setubal: É muito elevada. O governo federal em si é uma grande fonte de pressão, ao colocar dívida acaba puxando a taxa de juros. Por outro lado, o Brasil tem uma coisa espetacular. Nossa dívida pública é financiada basicamente com recursos de brasileiros. Mas é uma distorção esse nível de endividamento, de taxa de juros.
Valor: A economia ainda é muito indexada. Isso atrapalha?
Setubal: Antes do Plano Real, você podia indexar mensalmente. No Plano Real, uma das medidas foi que, para indexar qualquer coisa tem que ter prazo de pelo menos um ano. Mas é uma economia muito indexada ainda. Embora não haja obrigatoriedade de se ajustar os salários pela inflação, 99% do Brasil ajusta. Todo ano é inflação mais alguma coisinha.
Valor: Recentemente, o ministro da Fazenda disse que uma meta de inflação de 3% é exigente para um país como o Brasil. O que o sr. acha?
Setubal: Aí é outra conversa (risos). Estamos em 3%, 4%, fora o período da pandemia, em que teve um ano que teve 2%.
Valor: É melhor ser ambicioso e não conseguir ou não tentar?
Setubal: Tem uma falácia nesse raciocínio. Uma reclamação de que para levar à meta tem que ter um juro muito elevado. Achar que o esforço exige mais juros não é verdade. Vai exigir para levar até lá, mas depois esse esforço é igual. Ficando com inflação mais alta, vai ter um juro nominal mais elevado. O Brasil às vezes procura atalhos. Não tem milagre. Os outros planos não deram certo porque tinham atalhos, era só fazer a parte boa, congelar preços. O Plano Real não, endereçou uma série de questões. Teve dor para todo mundo.
Valor: Na sua visão, qual foi a confluência que fez com que desse certo? O país estava cansado? Foi mais fácil num governo-tampão?
Setubal: Demanda política havia, tanto é que o Fernando Henrique foi eleito no primeiro turno contra o Lula. É inacreditável pensar nisso hoje. [Antes do Real] havia o desejo evidente da população, não havia a competência técnica nem a vontade política, no sentido de enfrentar a questão dos bancos estaduais. Essa foi a grande novidade, uma vontade política que acabou elegendo o presidente para esse mandato. Tem que ter determinação política, senão não acontece. Estamos precisando disso agora. O Brasil precisa resolver a questão fiscal. A questão monetária o mundo todo sabe como funciona. O que não tem é fórmula para controlar a questão fiscal.
Valor: E esse é um assunto que atinge muitos países. Vários estão com problemas fiscais…
Setubal: Vai dar bobagem alguma hora. Vai ter uma crise por causa disso. Não começa pelos Estados Unidos. O dólar é moeda-reserva, fica muito mais fácil de refinanciar a dívida. Mas outros países podem ter problemas na dívida interna.
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