No governo de Itamar Franco, Bacha foi o principal negociador do plano desenhado pela equipe econômica com o Congresso e ganhou o apelido de senador. Para colocar o Real de pé, enfrentou a pressa do presidente da República e de aliados políticos
Estadão
O economista Edmar Bacha diz ter criado uma armadilha para si próprio ao afirmar, depois do fracasso do Plano Cruzado, que só voltaria ao governo como parte do movimento político. Foi o que ocorreu. Na gestão de Itamar Franco, em 1993, retornou ao governo como assessor de Fernando Henrique Cardoso, então ministro da Fazenda, e assumiu um papel de protagonismo na implementação do Real.
“Eu achava que era uma loucura ir para o governo naquela circunstância. Em sete meses, o Itamar já tinha demitido três ministros da Fazenda. Só tinha dois anos de governo e a situação parecia muito precária”, lembra. “Foi quando cheguei em Brasília, e o tucanato estava me esperando. O Mario Covas me disse: ‘Bacha, isso não é uma decisão do Fernando. É uma decisão do partido. Você é o economista do partido. Você vem conosco’.”
Bacha foi o principal negociador do plano desenhado pela equipe econômica com o Congresso. Já tinha barba e cabelos brancos. Ganhou o apelido de senador. Também enfrentou muita pressão, do presidente Itamar Franco e dos políticos do PSDB. Havia a defesa do congelamento de preços e todos tinham pressa de ver o plano lançado com a proximidade da eleição de 1994.
“Os políticos tinham muita pressa. O Itamar também. Quando o Fernando Henrique me levou para conversar com ele, eu expliquei, em geral, o plano. No final, eu pedi um autógrafo para os meus filhos. Ele me deu um autógrafo que dizia mais ou menos assim: ‘Para Júlia e Carlos Eduardo, com os meus cumprimentos e desejando que vocês digam para o seu pai ter muita velocidade para o bem do Brasil’.”, diz.
A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.
O Brasil vinha de várias tentativas fracassadas. Qual era o sentimento que vocês tinham naquela época? Havia uma confiança que iria dar certo?
A gente relutou muito. Tem até a história de uma reunião que o Fernando Henrique fez com a equipe econômica e com os advogados em que ele ficou irritado e saiu da reunião dizendo: “Não aguento mais. Os advogados dizem que tudo é inconstitucional, e vocês, economistas, dizem que tudo vai dar errado.” Havia muita incerteza. Não só pelo insucesso dos planos anteriores como pelo fato de que a situação do governo era muito precária. E, além disso, um plano daquele tipo nunca havia sido implementado em lugar nenhum. A gente estava saindo do quadro negro da PUC para a realidade política de Brasília. Sabe-se lá qual seria o resultado.
O sr. já havia feito parte do governo e disse que só voltaria ao governo como parte de um movimento político. Como foi a sua chegada ao ministério do Fernando Henrique?
Depois do fracasso do Plano Cruzado, prometi a mim mesmo que jamais voltaria para o governo como tecnocrata. Voltaria para o governo como parte de um movimento político. E foi por isso que eu ingressei no PSDB logo que foi fundado. Era membro da comissão executiva. Fui economista da campanha do Covas (Mario Covas foi candidato a presidente na eleição de 1989). E, na verdade, eu achava que era uma loucura ir para o governo naquela circunstância. Em sete meses, o Itamar já tinha demitido três ministros da Fazenda. Só tinha dois anos de governo e a situação parecia muito precária. Foi quando cheguei em Brasília, e o tucanato estava me esperando. O Mario Covas me disse: “Bacha, isso não é uma decisão do Fernando. É uma decisão do partido. Você é o economista do partido. Você vem conosco”. Na verdade, eu armei uma armadilha para mim mesmo, porque eu disse que só voltava como parte de um movimento político, e o movimento político ali estava me dizendo que tinha chegado a hora.
O sr. poderia lembrar do episódio em que discutiram o plano na reunião com o Covas?
Os economistas tinham muito medo de fazer a mágica. A mágica era a transformação da URV (Unidade Real de Valor) no real. A nossa experiência no Cruzado era de que, quando a gente fazia a mágica, a gente perdia o controle da situação. No Cruzado, uma vez que a gente fez o congelamento, nunca mais os economistas palpitaram no curso dos acontecimentos. E ali havia essa esperança totalmente ingênua dos economistas de que a gente podia levar a URV até o final do mandato do Itamar e só começar a nova moeda quando o Fernando Henrique fosse eleito. Mas a situação política era muito clara. Naquela circunstância, quem iria ser eleito era o Lula, não o Fernando Henrique, mesmo depois do lançamento da URV.
A pressão política era para o lançamento do real tão cedo quanto o possível. Essa reunião de setembro de 1993, quando nós explicamos para o comando do PSDB como é que o plano iria ser, especialmente para o Covas, que era o mais relutante. Ele era candidato a governador de São Paulo. Eu disse para ele que a inflação só iria baixar depois de meados do ano seguinte, ele quis ir embora. Mas, ao final, se convenceu. Se convenceu, assim, em termos, e falou: “Se é isso que vocês têm para fazer, então, eu vou com vocês para o precipício”.
Era essa a sensação geral?
Os políticos tinham muita pressa. O Itamar também. Quando o Fernando Henrique me levou para conversar com ele, também em setembro, um pouco antes dessa reunião do PSDB, eu expliquei, em geral, o plano para o Itamar. No final, eu pedi um autógrafo para os meus filhos. Ele me deu um autógrafo que dizia mais ou menos assim: “Para Júlia e Carlos Eduardo, com os meus cumprimentos e desejando que vocês digam para o seu pai ter muita velocidade para o bem do Brasil”. Ele pediu muita velocidade, mas esperou nove meses até a criança nascer.
Qual foi o diagnóstico da equipe quando chegam no governo?
O diagnóstico a gente já tinha. As maneiras de lidar com essa inflação foram objetivo dos debates que tivemos na PUC no início dos anos 80. E desse debate saíram as duas grandes teses. A tese do Chico Lopes, do chamado choque heterodoxo, que foi aplicada no Plano Cruzado. E a tese do André Lara e do Persio Arida, da reforma monetária, que foi a que a gente, com diversas modificações, aplicou no Plano Real. Em meados de agosto de 1993, a gente já sabia o que fazer. A questão só era o medo que tínhamos de fazer o plano e perder o controle sobre a situação, perder o controle para o Itamar. Em fevereiro, já tinha tido um problema sério quando foi lançada a MP da URV. Antes do lançamento, o pessoal do Itamar queria modificar tudo. E o Fernando Henrique teve de bater a mão na mesa e dizer: “Ou é assim ou vou embora”. E de novo, na MP do lançamento do Real, o Ricupero teve de bater a mão na mesa, dizendo que tinha de ser do jeito que a gente tinha feito, não do jeito que o pessoal lá do Palácio do Planalto queria. A questão era, quando a gente entregasse o produto, como iria manter o controle nos cinco meses finais do governo Itamar, mas ele se comportou razoavelmente bem.
O Itamar queria muito congelamento de preço?
Todo mundo queria congelamento. Não era só ele, não. Essa foi uma batalha interna que a gente teve dentro no governo desde o princípio.
Em depoimentos anteriores, o sr. chegou a dizer que imaginou que o Fernando Henrique iria pedir demissão nessa conversa com o Itamar. O que houve nesse encontro?
É engraçado que o Fernando Henrique não conta isso nas memórias dele. Jamais vamos saber. Mas você pode imaginar o que ele falou para o Itamar.
Mas no seu caso, já estava fazendo as malas? Já tinha desistido?
Eu achei que o Fernando Henrique iria chegar lá e dizer que iria embora. E o Itamar iria falar: “Então, está bom. Vou colocar aqui um ‘Itamarinho’”. A história é engraçada, porque tem uma série de acontecimentos implausíveis. Eu acho que duas semanas antes de o Persio e o André entrarem (no governo), tivemos um jantar em São Paulo e eu falei que a situação estava horrível. Eles disseram: “Você se mete em cada uma. Nós dois não vamos nos meter nisso, nem pensar.”
E como era a relação com o Itamar?
Comigo a relação era especial. Em 1974, quando eu estava na UnB, eu assessorava os deputados e os senadores do MDB contra a política econômica da ditadura. Fraco Montoro, Itamar. Foi quando eu produzi a fábula de Belíndia (combinação de um país com características de Bélgica e Índia). Então, além de sermos ambos mineiros, eu já tinha essa relação com o Itamar lá de 1974. Tanto que eu pude pedir o autógrafo que ele deu muito carinhosamente. Ele sabia que era difícil conversar conosco. Nunca houve uma troca, exceto por essa reunião que fui só eu, ele e o Fernando Henrique. Nunca houve uma interação forte assim da equipe econômica com Itamar. Era tudo intermediado. Primeiro, pelo Fernando Henrique e, depois, pelo Ricupero.
Como funcionava a decisão da equipe econômica?
Não tinha hierarquia. Estávamos acostumados a discutir muito entre nós na PUC, sem hierarquia. Agora, tinha um bom administrador, que era o Clovis Carvalho. O Clóvis Carvalho que organizava as reuniões, mas ele não era economista. O Clóvis só administrava o processo de forma muito eficaz. Foi ótimo ter o Clóvis lá. Ele era bem mestre-escola nesse sentido, de toda semana tinha dever de casa para ser apresentado na semana seguinte. No final, era por consenso. Nem por consenso. Como o Clóvis dizia, era por consentimento. Ele dizia: “Vocês podem não concordar, mas vocês têm de consentir”.
Na opinião do sr., o que foi decisivo para o plano dar certo?
Eu acho que o sucesso do plano, de fato, foi só garantido porque ele elegeu o Fernando Henrique. E eleito, o Fernando Henrique, nos quatro anos seguintes, tratou de manter a estabilidade. O André Lara sempre falava que fazer a inflação cair de súbito a gente sabe como fazer. A gente não sabe como mantê-la baixa. E isso só pode acontecer porque o Fernando Henrique foi eleito e implementou (as medidas necessárias) durante seus quatro anos, com muita dificuldade, porque a situação internacional foi muito ruim, com a crise do México, depois a crise da Coreia do Sul e da Rússia. Foi com muita dificuldade, como eu disse, que ele conseguiu implementar as políticas todas necessárias para sustentação do plano.
O sr. era o nome da equipe econômica que mais negociava com o Congresso. Ficou conhecido como ‘senador’. Como era esse processo?
A gente tinha, de saída, os votos do PSDB e do PFL (atual União Brasil). O PSDB tinha o candidato (a presidente), que era Fernando Henrique. E o PFL tinha um vice candidato, o Marco Maciel. Mas isso era só 25% dos votos no Congresso. Precisava de mais 25% E quem tinha os outros 20%? O MDB (antigo PMDB). O MDB tinha um candidato a presidente, que era o Quércia, que levou 4% votos. A negociação foi basicamente com o MDB, porque o PT olhou aquilo e falou: “Sou contra”. O pessoal mais à direita, junto com o Bolsonaro, olhou aquilo e falou: “Sou contra”. Se a gente conseguisse levar o MDB inteiro, a gente tinha 50% (dos votos). Então, houve essa negociação com o MDB, da qual a gente teve de fazer diversas concessões que não foram boas para o plano.
Por exemplo?
Nós tivemos de indexar os salários por um ano, até junho de 1995, e criar um índice de preços, o IPC-r (calculado durante o período de julho de 1994 a junho de 1995). E, obviamente, não sei se já ouviram falar na maldição dos índices. A maldição é a seguinte: toda vez que o governo inventa um novo índice, o novo índice dá mais alto que o antigo. O IPC-r deu 6% em julho, deu 5% em agosto. Foi um horror. A negociação com o Congresso teve um trade off. Você trocou um plano que era muito bom, do jeito que a gente mandou para o Congresso, por um plano bom. Mas tivemos o apoio do Congresso. Pudemos dizer que (o plano) tinha apoio, não é uma coisa tecnocrática. Tinha o apoio dos representantes do povo.
O sr. descreve um período de muitas crises, negociações e problemas. Houve algum momento que o sr. achou que o plano fosse naufragar?
Os primeiros seis meses do plano foram complicados, porque a inflação não baixou do jeito que a gente esperava. Houve a indexação de salários e o câmbio se valorizou muito, ao contrário do que a gente esperava, de manter em um (um dólar para um real). O dólar foi para 0,83 real. E isso criou problemas no lado das exportações. O crédito também se expandiu muito. Quando chegou em dezembro, a situação era ruim porque tinha um problema de excesso de demanda na economia e a inflação não tinha caído tanto. Precisava praticar uma política de contenção monetária e fiscal muito forte, além de manter a âncora cambial. Tivemos de subir os juros muito naquele período. Foram para valores inacreditavelmente altos para poder sustentar aquela situação. Então, foi apenas a determinação do Fernando Henrique, com todo o conjunto de reformas estruturais que ele promoveu, no setor financeiro e as privatizações. Foram reformas fundamentais para a sustentação do plano a médio prazo e que, inclusive, permitiu que, quando o Real flutuou, em janeiro de 99, aquela flutuação não significasse a volta da inflação. Aquele momento ali também foi muito crítico.
E quando a estabilidade ficou clara?
A estabilidade só ficou clara em 2003. Em 2002, teve a crise com a transição do medo do Lula. O que o Lula vai fazer quando entrar? O câmbio foi lá para o alto, a inflação também subiu muito, seguindo o câmbio. Mas aí o Lula se comportou, pelo menos nos dois primeiros anos. Foi aí que que houve uma certa percepção de que, mesmo sem Fernando Henrique, o plano estava consolidado, a estabilidade estava consolidada.
E, agora, qual deve ser o novo Plano Real do Brasil?
A gente conseguiu resolver dois problemas que foram a alta de preços e a dívida externa. E a gente deu uma boa melhorada na distribuição de renda, mas ela continua ainda muito ruim. Tem muito o que fazer nisso. Agora, o que a gente não conseguiu foi colocar essa economia numa trajetória de crescimento sustentado. O Brasil tem patinado. Desde a Dilma, a gente não está conseguindo quase nada em termos de crescimento de renda per capita. Eu acho que o Brasil continua a ter um problema de crescimento. Além da questão de crescimento com justiça social, há o problema do crescimento com sustentabilidade. Veja essa crise aí no Rio Grande do Sul. São questões que estão ainda na mesa.
E qual seria o caminho para o Brasil?
Ter uma educação de melhor qualidade, um governo eficiente e abrir a economia para o mundo. Que tal essa receitinha?
Não estamos perto…
Não.
Hoje, o Brasil ainda é Belíndia? Qual seria a imagem para o Brasil?
Eu acho que é Belíndia ainda. Nós temos uma distribuição de renda muito ruim ainda. A estabilidade deu poder de compra ao salário do trabalhador. Depois, os programas de transferências de renda ajudaram. Mas a desigualdade continua sendo um problema muito fundamental da nossa sociedade. É muito difícil imaginar que a gente vai conseguir sustentar a democracia brasileira com tanta desigualdade.
Por quê?
A desigualdade cria um apelo do populismo que é quase irresistível. Na questão da estabilidade, a gente ganhou essa guerra, mas queriam fazer era controle de preços. Foi o que a Dilma tentou fazer para não ter de fazer a coisa mais dura. Nós temos esse problema. O Delfim (Netto, ex-ministro da Fazenda) uma vez disse que, de certo, ele fez desse país uma Belíndia e, quanto nós fomos governo, fizemos desse país uma Ingana, impostos da Inglaterra e serviços públicos de Gana. E é verdade. Nós aumentamos extraordinariamente a carga tributária desde o Plano Real. São 10 pontos de porcentagem do PIB e o governo continua não conseguindo entregar serviços públicos de qualidade, como de educação, saúde, infraestrutura e segurança. Essa é uma problemática séria. Como é que nós vamos fazer um governo eficiente?
A nossa indústria também continua olhando para o próprio umbigo, totalmente relutante em sair para fora e deixar produtos importados entrarem na economia do País. Temos uma indústria que produz a preços elevados e continua atrás do governo. Isso eu acho muito errado. É a força dos interesses dessa elite empresarial que nós temos de explorar monopolisticamente ou oligopolisticamente o mercado nacional e não deixa ter concorrência com produtos importados. Só rico pode ter acesso a produto importado quando vai para fora (do País). Isso mostra como esse País ainda é uma Belíndia. É muito difícil do jeito que a coisa está indo, com essa alternativa entre Bolsonaro e Lula, perceber como é que a gente vai ter uma liderança tão esclarecida como o Fernando Henrique para enfrentar esses enormes desafios que o País tem para frente.
Há espaço para uma terceira via?
Eu espero que haja, porque é aí que nós estamos. Obviamente, o PSDB desapareceu. Tem o Leite (Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul), tem a governadora de Pernambuco (Raquel Lyra). Mas é muito pouco. Tem de formar uma composição com outros partidos para poder criar uma alternativa.
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