Folha
Em 2013 as pessoas foram às ruas. Estava claro uma limitação do contrato social da redemocratização. Nosso contrato conseguiu melhorar a vida das pessoas. O consumo privado aumentou muito.
No entanto, nosso contrato social tem a limitação de não conseguir ofertar serviços de consumo coletivo. Como exemplos, temos infraestrutura urbana muito deficiente nos transportes públicos e na rede de saneamento básico.
A frase mais emblemática das manifestações de 2013 foi “em sociedades desenvolvidas o rico vai ao trabalho de transporte público. Em sociedades subdesenvolvidas o pobre vai ao trabalho de carro”.
As obras padrão Fifa dos estádios sinalizavam a possibilidade da melhora. Quando queríamos, conseguíamos padrão Fifa. Adicionalmente, explicitava o desperdício de recursos públicos e a inversão de prioridades.
Das manifestações de 2013 fomos para as eleições muito agressivas de 2014, e dessas para a nossa grande crise de 2014-2016. Apareceu um déficit fiscal estrutural do governo central em 2014 de 1,8% do PIB, que está conosco até hoje.
Para mim sempre foi claro que uma das motivações para o centrão embarcar no impedimento de Dilma foi a necessidade de liderar o ajuste fiscal. O centrão pensou: “Arrumamos o fiscal e esses caras voltam em 2018 com uma campanha como a 2014? Vamos para o impedimento. Ficamos com o ônus do ajuste fiscal mas teremos os bônus da presidência”. Acho que foi mais ou menos isso que ocorreu.
Temer aprovou o teto dos gastos e Paulo Guedes, após o momento mais agudo da pandemia, passou o bastão para Fernando Haddad com um superávit primário estrutural da União, segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI), de 0,2% do PIB.
Penso que a sociedade não aceitou a redução do gasto público promovida pelo ministro Paulo Guedes. A aprovação da emenda constitucional da transição, com amplo apoio do Congresso Nacional e da sociedade organizada, sugere que minha leitura está correta.
Andamos e voltamos para onde estávamos em 2014: em 2023 o déficit público estrutural do governo central foi de 1,6% do PIB, ante 1,8% de 2014. A dívida pública cresceu: 76% do PIB agora ante 56% em 2014.
Uma inspeção visual da série da IFI de primário estrutural é claríssima: o ajuste fiscal estrutural precede ciclos de crescimento. O motivo é muito simples: uma sociedade com um déficit fiscal estrutural é uma sociedade que vive um conflito distributivo aberto. Não há consenso na sociedade, o que dificulta muito o cálculo empresarial e eleva o prêmio de risco.
A bola está com o presidente Lula. Ele tem liderança para conduzir o processo de construção de uma situação fiscal superavitária que estabilize a dívida pública.
Há um conjunto de medidas. Desde rever os indexadores do salário mínimo e do gasto mínimo constitucional em educação e saúde até uma maior tributação dos regimes tributários especiais, Simples e lucro presumido, além de continuar com a agenda de rever as desonerações.
Por exemplo, o artigo sexto da MP 1247, que reduz inúmeras desonerações, que o Congresso devolveu ao presidente há três semanas, no mérito está correto. Com alguma regra de transição, pode ser retomado pela Fazenda na forma de um PL.
Há inúmeros outros caminhos, como pente fino no gasto público, aumentar imposto sobre a herança, instituir o imposto sobre grandes fortunas, etc. A solvência do Estado brasileiro é o mais importante.
Lula imaginava que conseguiria voar em céu de brigadeiro até 2026. A arrumação fiscal ficaria para o quarto mandato. A revisão do cenário inflacionário americano antecipou o ajuste. Terá que liderar a sociedade na negociação do conflito distributivo e, a partir dessa negociação, encontrar o caminho do crescimento sustentável.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2024/06/voltamos-a-2014.shtml
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