Estimular transição do carvão é o grande desafio das finanças climáticas desta década
Valor
Os mercados suspiraram aliviados e a bolsa americana disparou com a esperada notícia de a inflação americana estar cedendo. O time macro do Safra não crê, no entanto, que as preocupações com a macroeconomia mundial desaparecerão. Até porque a incerteza geopolítica e certos problemas como mudança climática e demanda por eletricidade não vão sumir por mágica.
As emissões de CO2 cresceram em 2023, com o carvão respondendo por 65% do aumento associado à produção de energia. O carvão provê apenas 27% da energia obtida de combustíveis fósseis, mas responde por 44% das emissões de CO2 atribuídas a essas fontes, com mais de 15 bilhões de toneladas ao ano. Reduzir as emissões do carvão é, talvez, a ação mais eficaz para mitigar o aquecimento global agora, como ilustra a queda das emissões totais de CO2 dos EUA, explicada pelo declínio do carvão lá.
A rápida redução do uso do carvão impactaria as economias da Ásia, onde muito da eletricidade vem dele, explicando porque representa apenas 20% da energia final do mundo, mas 40% das emissões globais de CO2. O corte exigiria lidar com cadeias de produção longas e com grande pegada social, não podendo ser imposta, até pela lógica do Acordo de Paris. Estimular essa transição é o grande desafio das finanças climáticas desta década, motivando os EUA, por exemplo, a promoverem o uso de créditos de carbono nesse esforço. Mas o assunto, nem de longe, monopoliza a atenção do G20, COPs ou fóruns afins.
Nesse contexto, a almejada redução das emissões da indústria brasileira, hoje em 100-150 milhões de toneladas de CO2 anuais e muito concentradas na siderurgia e no cimento, terá efeito modesto e custo incerto. Temos, portanto, que pensar qual o objetivo principal do mercado regulado de carbono que deve ser instituído até o final do ano. Dado que sua contribuição para reduzir as emissões do Brasil (em 20MtCO2 /ano até 2035?) e para absorver créditos de carbono da agrossilvicultura ou preservação florestal (5MtCO2 /ano?) será limitada, esse mercado tem que visar principalmente facilitar o diálogo dos nossos exportadores com parceiros comerciais no que tange, e.g., a tarifas de importação associadas a metas de redução de emissões regionais.
Talvez a redução de emissões da indústria brasileira se dê mais com o auxílio do recém-votado Marco do Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono, que aguarda a sanção presidencial. Na medida em que tecnologias com o hidrogênio amadureçam e se tornem competitivas, elas podem ajudar a redução de emissões na siderurgia, produção de fertilizantes, destilação do petróleo e até a navegação. O marco cobre não só o hidrogênio obtido da eletrólise com energia renovável, mas também da “reforma” do etanol e outras rotas de baixa emissão de CO2.
Outra iniciativa em curso que pode empurrar a descarbonização da indústria brasileira é o projeto de lei do “Combustível do Futuro”, que prevê ampliar o papel do biometano e biogás em complemento ao gás natural.
É interessante que as leis que estão surgindo para guiar a transição energética no Brasil, inclusive a do programa Mover para a indústria automobilística e da “eólica offshore”, não resultam de um plano estratégico formal concatenando as opções de transição, seus tempos, custos relativos e impactos no emprego ou comércio exterior etc. Não obstante iniciativas do Ministério da Fazenda para forjar uma visão abrangente da transição energética, essas leis têm se desenvolvido de forma aparentemente espontânea e eclética, evitando escolhas explícitas entre rotas de descarbonização, exceto no que toca, por exemplo, a estabelecerem-se teores de mistura de biocombustíveis nos derivados de petróleo ou no gás natural. Talvez o principal critério ligando as várias iniciativas seja privilegiar opções com menor emissões totais, isto é, ao longo de todo seu ciclo de vida.
Há expectativa que novas leis deem ao Brasil liderança na agenda climática, ainda que impactos sejam incertos
O uso do critério de ciclo de vida sugere, por exemplo, que o Mover possa favorecer o carro híbrido, especialmente aquele em que a tração seja só elétrica, face aos carros alimentados na rede elétrica ou os tradicionais. A vantagem do híbrido emergiria ao se contabilizar as emissões devidas à produção de uma bateria 20-30 vezes maior no carro plug in (80kWh x 4-2,5kWh) e da redução em até 45% das emissões face aos carros convencionais abastecidos com gasolina.
A maior eficiência térmica do carro híbrido em relação ao convencional pode, aliás, ajudar no dilema das refinarias de petróleo no Brasil. Como gastam menos combustível, mais carros híbridos podem rodar com a produção atual de etanol e de derivados de petróleo, evitando investimentos que talvez não tenham tempo de se rentabilizar. Nesse cenário, a evolução das baterias com menor pegada ambiental talvez desloque o carro híbrido em um horizonte que se encaixaria à expansão dos combustíveis sustentáveis para aviação (SAF) a partir dos biocombustíveis.
Ainda na mobilidade, com reflexo no SAF, merece menção o tratamento dado ao diesel verde, incluindo o óleo vegetal hidrotratado, que complementaria o biodiesel (molécula de ésteres), tendo vida de prateleira mais longa, maior potencial de mistura ao diesel mineral e criação de demanda por hidrogênio verde na sua produção.
Há a expectativa de que essas leis deem liderança ao Brasil na agenda climática, ainda que seu impacto fiscal e no custo Brasil seja, todavia, uma incógnita, já que não há notícias de estudos detalhados do seu efeito conjunto. Isso vale, por exemplo, para as metas de redução de emissões na aviação, compras de certificados (e.g., de biometano) e várias medidas talvez mais voltadas a organizar o mercado doméstico do que incentivar a exportação de energia limpa e produtos que a incorporem. Essa exportação é que dará escala econômica a certas opções. Mas, para o hidrogênio verde e produtos que o usem, por exemplo, ela vai depender de se desenvolverem mercados globais que os absorvam com preços compatíveis com a sua curva de produção e com uma estabilidade que lastreie os grandes investimentos fixos necessários para ela se concretizar.
Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/os-marcos-da-transicao-energetica.ghtml
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