Estadão
Com a língua ainda solta, Sua Sumidade decretou que “o povo pobre não come dólar”,
ecoando – para quem lembra – declaração de Maria da Conceição Tavares em 2014,
segundo quem “ninguém come PIB”. Ambas as afirmações nos remetem à fábula das
uvas verdes e estão obviamente erradas, mas aqui me dedico apenas à tolice presidencial.
No IPCA, índice que mede o custo do vida de famílias com renda até 40 saláriosmínimos, o item “alimentação no domicílio” equivale a cerca de 16% do gasto mensal; no
caso do INPC, que faz o mesmo para famílias com renda até 5 salários-mínimos,
representa ainda mais: 19% da despesa mensal.
Uma vista de olhos nos componentes deste grupo revela coisas como arroz, açúcar, carne
bovina e suína, aves, óleo de soja e vários outros assemelhados. Em comum, além de
serem alimentos, são produtos que são tipicamente exportados e (se necessário) também
importados.
Por conta disto, seus preços são formados em mercados internacionais. Se consumidores
querem importá-los, a referência é o preço internacional. Mesmo quando o país é
exportador, seu preço doméstico tem que se alinhar ao internacional, senão o produtor
não venderá aqui o que pode render mais lá fora.
Entre o preço doméstico, em reais, e o internacional, em dólares, fica a taxa de câmbio,
o custo em moeda nacional de cada unidade de dólar; no momento em que escrevo perto
de R$ 5,50 por dólar. No final do ano passado, em contraste, o dólar custava
aproximadamente R$ 4,90, isto é, ficou uns 12% mais caro.
De acordo com dados do BC, que acompanha os preços das commodities agropecuárias
em reais e em dólares, entre dezembro e junho estes valores em dólares aumentaram
6,4%; já em reais, nada menos do que 17,2%. A diferença se deve à subida do dólar.
É curioso, mas não surpreendente, que o mesmo governo que comemorava a queda do
dólar como sinal de sucesso de sua política econômica, agora finja que sua alta nada tem
a ver com os erros de política econômica e, ainda por cima, promova malabarismos para
tentar provar que isto não causa perdas à população, em particular a de baixa renda.
Cada declaração aloprada do presidente sobre não cumprir a meta fiscal por ele mesmo
determinada, ou acerca de “mudanças de filosofia” no BC quando indicar seu próximo
presidente, encarece um pouco mais o dólar e, consequentemente, a comida (além de
tudo o mais importado e exportado).
O povo pobre, em particular aquele do IPNC, que consome 19% do seu orçamento em
alimentação, encontra isto no seu dia a dia.
Come dólar, sim.
Link da publicação: https://www.estadao.com.br/economia/alexandre-schwartsman/come-dolar-sim/
As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.