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Liberdade e destino

Folha

Ler bons livros é um dos grandes prazeres da vida. Vez por outra, esse prazer é ampliado quando uma leitura nos surpreende por fugir ao roteiro por nós imaginado.

Experimentei essa surpresa recentemente, ao ler “Sem Destino” de Imre Kertész (1929-2016), ganhador do Nobel de Literatura em 2002, livro que me foi recomendado por uma amiga querida e boa leitora.

O personagem Gyorgy Koves, como Kertèsz judeu húngaro, é deportado -também como Kertėsz- a Auschwitz com 14 anos. É importante lembrar que na Hungria a perseguição mais dura aos judeus deu-se a partir de 1944, após a invasão alemã.

Acompanhamos Gyorgy ao longo de um ano, por Auschwitz, Buchenwald e Zehdnick, até sua libertação e retorno para Budapeste em 1945.

Durante a maior parte do livro, imaginei estar diante de um relato como o pioneiro “É Isto Um Homem”, de Primo Levi, publicado logo após os eventos em 1947, ou “Noite”, do também ganhador do Nobel, Elie Wiesel, publicado em 1960.

Ambos textos da melhor qualidade humana e literária, enfatizam o grau de desumanidade a que o homem pode chegar; sejam os algozes com sua indescritível crueldade, sejam suas vítimas, reduzidas à mais primitiva luta pela sobrevivência.

Levi e Wiesel defendem a importância de resistir durante o calvário e a importância ainda maior de divulgar o ocorrido com toda a sua crueza, para que jamais se repita.

Há naturalmente muitos pontos comuns aos relatos dos três livros, afinal os personagens —reais ou fictícios— estiveram no mesmo campo, na mesma época. Um desses pontos é a importância de “dar um passo após o outro”, estabelecer objetivos imediatos, como sobreviver mais um dia apenas, pois o desafio de resistir muitos meses parece tão intimidante a ponto de ser desencorajador.

Parêntese: esse pode ser um recurso salvador em situações diversas. No livro “Tocando o Vazio”, de Joe Simpson —um dos melhores relatos de aventura que conheço—, um alpinista ferido e solitário recorre a ele para conseguir retornar ao acampamento base, estabelecendo repetidos objetivos, cada um deles a poucos metros de distância.

É no reencontro em Budapeste de Gyorgy com dois senhores judeus, seus vizinhos, após saber da morte de seu pai em Matthausen, que Kertész traz o elemento que tanto me surpreendeu. Gyorgy se recusa a ser considerado uma vítima inocente e reivindica responsabilidade e um papel ativo na experiência que viveu: “Se existe um destino, a liberdade não é possível; porém, se existe liberdade, não há destino”.

Em seguida, insinua a seus indignados interlocutores que eles são corresponsáveis, dada a passividade com que assistiram à escalada da opressão nazista. Lembra-os que na noite em que todos se despediram do seu pai, que fora convocado aos trabalhos forçados e partiria na manhã seguinte, chegaram a discutir se era mais prático ir de bonde ou de ônibus.

A ideia é a mesma contida no poema “Invictus”, de William Henley, que inspirou Nelson Mandela durante seus 27 anos de prisão, cujos versos declamava recorrentemente para si e para seus companheiros. O final do poema retrata o sentimento expresso por Gyorgy: “Eu sou o senhor do meu destino: eu sou o comandante da minha alma”.

Sentimento que exige muito de quem o pratica, preferindo-o à busca de harmonia contida na conhecida frase de Sêneca: “O destino conduz a quem consente e arrasta a quem a ele resiste”.

“Sem Destino” trouxe ainda mais uma surpresa para mim, na frase finai de Gyorgy: “Pois lá [no campo de concentração], entre durezas, havia… na pausa das torturas, algo que se assemelhava à felicidade”. A felicidade, creio eu, de ver-se capaz de resistir, de dar mais um passo, alcançar mais um pequeno objetivo.

Essa surpresa final remeteu-me imediatamente a um texto que já citei nesse espaço há exatamente um ano: “O Mito de Sísifo”. Camus conclui o texto afirmando ser necessário sermos capazes de imaginar Sísifo feliz (apesar de condenado a empurrar eternamente um rochedo morro acima, só para vê-lo rolar morro abaixo em seguida), pois “a própria luta para ascender ao cume é suficiente para preencher o coração de um homem”.

A leitura do romance de Kertész ampliou minha compreensão da afirmação de Camus, ao levar-me a me perguntar se a felicidade de Sísifo repousa sobre sentir-se agente do seu destino, em que pese sua condenação.

Não creio que seja necessário extrair nenhuma lição prática imediata desses pensamentos. O simples exercício de estabelecer relações entre leituras novas e conhecimentos antigos basta em si mesmo. Mas não resisto ao impulso de perguntar-me se há algum campo em que identifico —em mim e à minha volta— um comportamento de vítima, onde caberia buscar ser mais agente do meu, do nosso destino.

Creio encontrar na forma como toleramos quase sem reação o agravamento do aquecimento global, como se estivéssemos condenados a suportá-lo passivamente, um campo em que há necessidade de maior protagonismo.

Acho que cabe perguntarmo-nos se estamos dando suficiente importância ao assunto, se alteramos nossos hábitos, se escolhemos nossos candidatos levando esse aspecto de suas propostas em consideração, se nos manifestamos em nossos grupos, se procuramos educar nossos filhos e netos e se nos abrimos para apreender com eles.

No mês passado, 1.400 peregrinos pobres (pois não contavam com os cuidados que recebem os peregrinos “oficiais”) morreram durante a celebração do Hajj, em Meca, na Arábia Saudita. Não morreram em uma inundação, tornado, incêndio, ou fome provocada por uma quebra de safra; morreram sob o efeito direto do calor de 51 graus. O aquecimento global não precisa mais de intermediários para matar.

Não dá mais para ignorar. E, se não ignoramos, não podemos permanecer passivos.

Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2024/07/liberdade-e-destino.shtml

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Sobre o autor

Candido Bracher