Entrevistas

Nenhum país é governável com a mentalidade gasto é vida, diz Stuhlberger, da Verde

Para gestor, câmbio depreciado veio para ficar e troca no BC preocupa

Valor

À frente do emblemático fundo Verde, um dos multimercados mais antigos da indústria de gestão de recursos no Brasil, Luis Stuhlberger mudou o posicionamento da carteira para um cenário mais pessimista a partir de abril. Foi quando o governo encaminhou a proposta do orçamento para 2025 que ficou claro que o arcabouço fiscal, desenhado no ano passado, não era crível. Com premissas de arrecadação extremamente agressivas, despesas subestimadas e um PIB projetado em 2%, a lógica do “gasto é vida” do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltou à mesa.

O teto de gastos, diz, já tinha sido derrubado no final do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Depois de Lula conseguir com o Congresso cerca de R$ 150 bilhões com a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da transição, soma similar à obtida por Bolsonaro, o crescimento de gastos previdenciários e assistenciais mostra uma equação difícil de ser resolvida.

“A quantidade de gente no Brasil que recebe um cheque do governo por mês é de 111 milhões de pessoas. A massa que trabalha não consegue bancar pagamentos para quem não trabalha”, diz Stuhlberger, ao atualizar o seu diagnóstico macroeconômico e refletir sobre a indústria de multimercados.

No ajuste do timão, o gestor passou a comprar dólar, diminuiu a parcela em ações e trocou a histórica exposição em Notas do Tesouro Nacional série B (NTN-B) pela equivalente americana, a Treasury Inflation-Protected Securities (TIPS). Foi insuficiente para superar o CDI no ano, mas o Verde é um dos poucos multimercados tradicionais que numa janela de 2,5 anos ainda tem gordura em relação ao referencial.

“Eu diria que o Brasil é uma corrida bancária que ficou controlada, mas a atuarial não. Isso foi um fator de perda para os fundos brasileiros, tanto multimercados quanto de ações.”

A sucessão de Roberto Campos Neto na presidência do Banco Central é um fator de preocupação se o indicado for alguém que ceda a pressões políticas por corte de juros. “O governo do PT quer sempre acelerar, vai no limite. Só que aí obriga o BC a brecar, e se tirar esse equilíbrio, que é o que a [ex-presidente] Dilma [Rousseff] fez, colocando o [Alexandre] Tombini, aí há um estrago. Se isso acontecer, eu garanto que a coisa que você vai ter mais saudades é do tempo que conseguia comprar dólar a R$ 5,60, porque ele vai pra R$ 7.”

Ele não vê, contudo, esse cenário se concretizando se Gabriel Galípolo, atual diretor de política monetária, for o escolhido, mas diz que o real mais depreciado veio para ficar.

A seguir, trechos da conversa com Stuhlberger, que recebeu o Valor na sede da gestora no fim da semana passada.

O pé trocado dos multimercados
Os multimercados, grandes e menores, operam bastante no exterior. Mas claro, têm o ‘edge’ brasileiro. Dificilmente você vai ver um multimercado aqui que não tenha nenhuma posição no Brasil. E digamos assim que esses sete meses, seis meses mais um, o Brasil teve uma deterioração no preço dos ativos bastante significativa.

A gente pegou essa deterioração no começo. Fomos mal de janeiro a abril, mas de abril em diante, meio que virou. Eu já falei que me penitencio por ter acreditado que o PT teria alguma seriedade fiscal. Aí mudei de ideia, a gente passou a comprar dólar, diminuir a exposição a ações, trocamos as NTN-Bs por TIPS americanas, e aí melhoramos a performance. Não deu para compensar todas as perdas, que não foram enormes. Mas, pelo menos, eu acho que a gente agora está do lado certo do ciclo econômico.

Quebra de confiança
O teto de gasto já levou um tiro no final do governo Bolsonaro. Aí vem uma fase de muita tensão no Brasil, no segundo semestre de 2022, que era política mesmo, tipo vamos ter um presidente? Bolsonaro falou que não ia aceitar o resultado das urnas. Foi extremamente sério. Estrangeiros dizendo assim: ‘não posso investir no Brasil porque não sei se vocês vão ter um presidente’; foi apavorante. Aí o Lula ganha por uma margem pequena, mas governa como se tivesse uma margem enorme. Esperava-se um Lula, digamos, mais parecido com o Lula 1 e Lula 2, vem aquela tensão de querer a PEC de transição, subindo já o gasto de 2022 para 2023 de maneira muito expressiva. Foi aprovada no Congresso que não é de esquerda, mas dá governabilidade. Deram uma quantia parecida àquela que deram para Bolsonaro, R$ 150 bilhões. E depois, com o passar do tempo, o [ministro da Fazenda, Fernando] Haddad foi reconstruindo a parte de tributos que o Bolsonaro excluiu.

De certa forma, a situação cambial boa durante um bom tempo mitigou uma situação fiscal ruim; até o dia que não mais”

“Gasto é vida”
Essas mudanças abruptas econômicas começam naqueles primeiros meses de governo Lula com ‘gasto é vida, sou contra qualquer tipo de controle, sempre governei gastando muito, mas depois o PIB cresce e tudo se resolve’. Até que depois de um certo tempo de debate sai o arcabouço, no começo de 2023. Houve um período de calmaria relativamente longo, quase um ano. Teve outras tensões, mas do ponto de vista fiscal, o mercado acabou comprando a ideia de que o arcabouço funcionaria. A premissa não era a ideal, mas as tensões vinham muito mais de fora do que de dentro, basicamente dos Estados Unidos.

Começou a ficar claro que o arcabouço era uma peça de ficção quando o governo mandou o orçamento do ano que vem. Veio com premissas de arrecadação extremamente agressivas, depois de tudo que subiu em 2023, subiu em 2025 sobre 2024, 3,5%. Com o PIB que a gente imagina, que vai subir um pouco mais de 2%, é impossível. E aí tem aquelas metas, vai fazer R$ 50 bilhões de acordos no Carf, premissas que não vão ocorrer. A Fazenda governa no estilo, ‘eu aumento, mas não invento’. E isso, no final, acaba deixando o Congresso irritado.

O nó previdenciário
No gasto do governo federal, que deve estar por volta R$ 3,4 trilhões, 20% do PIB, há um crescimento expressivo dos gastos previdenciários totalmente incompatível com a reforma. A reforma da Previdência mostraria agora uma curva de crescimento muito abaixo do que se vê. E ninguém tem uma explicação para isso.

Eu não sei exatamente onde passaria essa curva, mas acho que seria mais perto de 1% e está subindo 3%. Nos últimos 12 meses, o acumulado é de R$ 930 bilhões. Mas previdência é previdência, as pessoas ficam mais velhas, se aposentam. Agora, o que está subindo de maneira muito mais intensa é aquilo que chamo de assistência social, é uma quase previdência. As rubricas são imensas, esse número já é de mais de R$ 500 bilhões e está subindo. Coisas como o Bolsa Família, o BPC [Benefício de Prestação Continuada], que é o valor de uma previdência para quem não contribuiu, mas se aponta que tem qualquer doença que não te deixa trabalhar, você consegue.

Por isso que o Haddad fala, ‘deve ter fraude, vamos achar uns R$ 15 bilhões nisso, R$ 20 bilhões’. O governo promete e não acha. E deu uma acelerada no governo Lula.

Quando se soma a previdência mais toda a assistência social, esse número já chega a R$ 1,7 trilhão. E para o ano que vem vai ser maior. Por isso que o mercado não se acalma com corte R$ 15 bilhões, porque isso sobe R$ 200 bilhões por ano. A quantidade de gente no Brasil que recebe um cheque do governo por mês é de 111 milhões de pessoas. A massa que trabalha não consegue bancar quem não trabalha. Ainda assim, esses cheques não são grandes. Se tirar a fortuna de todos os brasileiros ricos juntos, você não paga um ano disso. O problema é que é o âmago do pensamento do Lula.

Nenhum país é governável com essa mentalidade, mas o Lula e a esquerda acreditam na teoria de que se distribuir esse dinheiro todo, essas pessoas vão consumir. Em consumindo, a indústria vende, o comércio vende, a economia gira, as empresas pagam impostos e no fim terá valido a pena, porque isso faz o PIB crescer. E quando o PIB cresce, a dívida/PIB não cresce. É um pensamento que deu errado, historicamente, em todos os lugares do mundo.

Lá e em abril, maio, quando os agentes econômicos entendem isso, houve deterioração súbita dos ativos. Misteriosamente, mesmo antes da deterioração dos juros e do câmbio, a nossa bolsa já vinha mal. Os estrangeiros tiraram R$ 40 bilhões do Brasil até abril, maio.

Os brasileiros estavam otimistas e não entendendo por que o gringo estava tirando dinheiro. Mas era da bolsa. Em investimento direto, compra de participações de empresas, não é um dado dramático, está todo mundo feliz porque a conta corrente está boa, com o Brasil batendo recorde de exportações, com o pré-sal, a balança crescendo, são números bons. Então, de uma certa forma, essa situação cambial boa durante um bom tempo mitigou uma situação fiscal ruim, até o dia que não mais.

O Brasil é uma corrida bancária que ficou controlada, mas a atuarial não. Isso foi um fator de perda para os fundos”

É um conceito muito simples, que é ‘quando a pasta de dente sai do tubo’. Aí não adianta você falar, ‘não, mas eu vou contingenciar’. Quando a pasta de dente sai do tubo, essa teoria da entropia, demora para ela voltar. Agora, se você me perguntar, o Brasil tem conserto? Tem. Mas você tem que modelar no preço dos ativos a equação: Qual a chance de o Lula ganhar a eleição em 2026? É no mínimo 50%. Então com esse tipo de política, por mais quatro anos, até 2030 o país vai piorar muito.

Eventualmente, neste ano, cumpre a meta. Mas a dívida/PIB não sobe só pelo arcabouço. As coisas fora do arcabouço não são pequenas. O que o mercado olha hoje? Tá bom, são R$ 15 bilhões [de contigenciamento], ok, mas a receita está superestimada, a despesa do ano que vem subestimada. Mesmo o governo fazendo com controle é um negócio que sobe R$ 200 bilhões por ano.

É claro que o governo quando se vê num ‘corner’, dá um medo lá em Brasília. Se a bolsa cai, o juro sobe, eles não entendem muito bem; mas o dólar quando sobe é sério, porque pega a inflação na veia, vai afetar o preço de alimento, vai atingir a classe pobre. Estamos no meio disso e não vai melhorar muito.

Câmbio e efeito México
Quando se calcula o ‘fair value’ [valor justo] do dólar no Brasil – vamos dizer que esteja por volta de R$ 5,20, R$ 5,25 -, entram várias coisas na conta: o CDS [prêmio de risco] do Brasil, o CRB [índice de commodities], a diferença da Selic para os Fed funds [juros dos EUA]. Leva em conta o preço do dólar em relação ao euro, ao renminbi [chinês], e também a moedas de emergentes. E o México tem peso importante na cesta. A Claudia Scheinbaum [nova presidente do país] é uma pessoa surpreendentemente preparada, se comparar com o Lula. De esquerda, mas preparada. O problema é que fez um Congresso com dois terços de esquerda. Eu nem acho que a moeda [mexicana] tenha se depreciado muito. Mas isso pesou no real em 20 centavos. Se hoje o fair value é R$ 5,20, R$ 5,25, se não tivesse o efeito México, seria R$ 5,00.

Eu digo o México, mas o peso chileno também se depreciou, o colombiano, e agora com o [Donald] Trump [candidato republicano com chances de voltar à Casa Branca], há uma tendência negativa, com esse protecionismo, para as moedas da América Latina.

Esse dólar veio para ficar, a pasta de dente não vai voltar para o tubo. Na minha conta, está 6,5% acima do ‘fair value’, se comparar o preço do dólar/real. No governo Dilma foi 20% acima, o que equivaleria hoje a R$ 6,10, R$ 6,20. Porém, por que isso não vai ocorrer? Porque naquela época a gente tinha um déficit em conta corrente muito alto, era 5%, hoje é 2%.

Eu diria que o Brasil é uma corrida bancária que ficou controlada, mas a atuarial não. Isso foi um fator de perda para os fundos brasileiros, multimercados e ações.

Juros
O mercado coloca um prêmio para o juro no Brasil de 2025 em relação à média da SOFR [a taxa do overnight publicada pelo Fed] de quase 750 pontos, enquanto hoje é 500. Quer dizer, está em 7,5%, tem um prêmio. Agora, você me pergunta: ‘Então o juro vai ficar em 10,5% até final deste ano e um Banco Central petista vai subir para 12%?’ Não parece provável. Mas o mercado se equilibra nisso por uma razão de modelo. Então, você só vai ganhar essa diferença ficando até o fim.

A cada Copom que passa, sempre vai ter um prêmio grande. Eu fiquei muito surpreso quando isso aconteceu a partir de abril, porque imaginava que só ia aparecer no último ano de governo, quando poderia querer gastar mais e dar um pé no arcabouço.

Reforma tributária
Tem o Congresso e os seus lobbies empresariais. Você não consegue tributar algo do agronegócio. O governo tem razão, a carga tributária brasileira é enorme, mas é muito mal distribuída. Esse é um ponto. O Brasil é o país emergente com maior carga. Não é fácil ser ministro da Fazenda. Agora, muita coisa foi mal feita. Você fica discutindo dois anos e enfia um monte de coisa na última meia hora. Então, por exemplo, eu já vi que a tributação do setor de construção está mal feita. Vai precisar de ajuste no Senado, vai ser uma briga. Mas é uma coisa boa, acho que essa reforma do IVA, apesar de estar longe do ideal, vai ser bem melhor do que a situação atual.

Sucessão no BC
Preocupa todo mundo. Do mesmo jeito que o Lula pensa quanto mais gasto, melhor, o Brasil é um país que por conta disso tem um juro real de equilíbrio muito alto. E o Lula pensa assim: ‘E se esse juro fosse 2, 3% menor? Imagina esse dinheiro quanto faz falta no social…’ Os governos do PT, todos eles, Lula 1, Lula 2, Dilma, eles têm uma equação muito simples: para a economia funcionar com o mínimo de equilíbrio, o governo acelera e o Banco Central breca. O governo do PT quer sempre acelerar, vai no limite. Só que aí obriga o BC a brecar, e se tirar esse equilíbrio, que é o que a Dilma fez colocando o Tombini, aí há um estrago. Se isso acontecer, eu garanto que a coisa que você vai ter mais saudades é do tempo que conseguia comprar dólar a R$ 5,60, porque o dólar vai para R$ 7. Esse equilíbrio – o governo acelera e o Banco Central breca – não é bom, mas funcionou nos oito anos do governo Lula. O juro nos oito anos do governo era 15%, 16%, 17%. E o Brasil funcionava desse jeito.

Não acho que isso vá acontecer com o [Gabriel] Galípolo [diretor de política monetária, principal nome cotado para assumir o posto de Campos Neto]. As circunstâncias de mercado farão com que o Lula não coloque um novo Tombini, quando quem determinava taxa de juros supostamente era a Dilma.

Vai depender de quem vai estar no Banco Central, é muito sensível. Se cortar o juro de 10,50% para 9,50% num cenário desse, já é muita coisa. E o Lula, vamos dizer, ele fica possesso porque isso vai contra o bom senso econômico que entende que tem.

Eleições nos EUA
Olhando para o futuro, acho que o que está em jogo é o que se chama de ‘Republican Sweep’, que é o Trump ganhar e levar o Senado e a Câmara. Ele vai ficar muito mais poderoso. E isso é muito importante. Tem coisas que o Trump pode fazer sozinho. Por exemplo, aumento de tarifas de importação. De fato, não acho que ele vá executar tudo que está falando, tipo, ‘vou expulsar 10 milhões de pessoas, vou deportar [imigrantes]’. Isso não é viável, mas essa combinação de muito menos imigração com aumento de tarifas é muito inflacionária.

Tem uma dificuldade de dizer quanto isso está no preço, porque o que a gente chama de ‘rates’ [juros], de Fed funds, para dezembro de 2025, está por volta de 3,70% e o juro de hoje está em 5,30%. Não acho isso suficiente para um Republican Sweep, vai ser mais que isso porque vai gerar uma inflação para 2025 de 1% a 1,5% maior do que o mercado está marcando.

Essas coisas, às vezes, você não consegue fazer muito rápido. Então tem esse risco de o juro cair, depois eventualmente voltar a subir nos Estados Unidos. Esse risco está aí. A chance de o Trump fazer algo disso é razoável, é grande. Então isso vai gerar, pelo menos para os próximos meses, um fator de instabilidade para as moedas da América Latina.

A competição dos isentos
Nem todos tiram dinheiro, especificamente do multimercado, mas falando de LCA, LCI, CRA, CRI, debênture incentivada, Fiagro, fundo imobiliário, LIG, que são isentos [para a pessoa física], estamos falando de um estoque de quase R$ 1,8 trilhão. E tem aquela quantidade de CDBs de bancos muito pequenos que pagam lá 120% do CDI garantidos pelo FGC [Fundo Garantidor de Créditos], é também um competidor. Vai ter uma diminuição [dos incentivados] pelas medidas [de restrição de lastro] tomadas [pelo CMN], mas o estoque é imenso. No isento, tem risco de crédito privado e ‘duration’. E tem muita coisa que tem risco de execução. Então, é aquela história do Brasil: tem o investimento que tem o come-cotas [o imposto semestral]. O multimercado [em fundo fechado exclusivo/restrito] pagava imposto quando resgatava. Mas era grande o estoque. Você pega uma performance sofrível, porque nenhum cliente tem um multimercado só, e junta com os isentos, aí tem uma tempestade perfeita.

Neste R$ 1,8 trilhão [em dívida], alguma coisa vai dar errado. Mas o atrativo da isenção é grande, porque você está falando de até 2% ao ano de vantagem. É óbvio que o principal problema da gente, nem vou dizer da ‘asset class’, é performar melhor. Ano passado, a gente não foi mal, deu CDI mais 1,5% líquido e neste virou a chave de compreensão da complexidade séria do fiscal brasileiro. Não quero dar a impressão que a culpa é do Brasil, longe disso. A gente tem que melhorar, estamos trabalhando nisso.

Link da publicação: https://valor.globo.com/financas/noticia/2024/07/24/nenhum-pais-e-governavel-com-a-mentalidade-gasto-e-vida.ghtml

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