O chefe de pesquisa econômica do Julius Baer e pesquisador do FGV Ibre diz que o dólar poderia estar em R$ 4, que arcabouço fiscal tem duas inconsistências e que reforma tributária de renda não deve ser aprovada logo
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O físico e economista Samuel Pessôa, chefe de pesquisa econômica do Julius Baer e pesquisador do FGV Ibre, tem vasta experiência na área de crescimento e desenvolvimento econômico, atuando principalmente nas questões relacionadas a taxas, gastos e educação no Brasil.
Nesta entrevista ao NeoFeed, Pessôa é didático e recorre a números ao falar da política fiscal do governo Lula. Ele aponta duas inconsistências do arcabouço fiscal: a vinculação dos mínimos constitucionais de saúde e educação à receita e a regra do salário-mínimo, baseada no crescimento real do PIB agregado, e não do PIB per capita.
“São regras que requerem que linhas do orçamento público cresçam mais rapidamente do que o gasto total”, afirma. O economista, porém, não esconde sua surpresa com a atuação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que pressiona as metas do equilíbrio fiscal.
“As escolhas que o presidente faz estão produzindo um descalabro fiscal, é até difícil de entender”, diz. “Como que ele quer que o salário-mínimo cresça mais do que a economia?”, emenda, lembrando que até o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tentou demovê-lo da ideia.
Pessôa diz que a economia brasileira está “super barata” e afirma que estudos feitos com o economista Livio Ribeiro, do FGV Ibre, indicam que o dólar deveria estar cotado a R$ 4. “Se o Brasil conseguir arrumar a política fiscal, o espaço que tem para valorizar o câmbio é gigantesco.”
Sobre reforma tributária, que ele considera a reforma estruturante mais importante feita no País desde o Plano Real, Pessôa faz uma previsão surpreendente: diferentemente da reforma de consumo, discutida há anos no Congresso, a reforma tributária sobre a renda não deve ser aprovada tão cedo, pois todo brasileiro se considera classe média e quem tem de pagar imposto de renda são “os ricos”. “A sociedade brasileira não está preparada para discuti-la”, afirma.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista:
O governo Lula 3 começou bem em 2023, com arcabouço fiscal, desinflação e crescimento surpreendente do PIB, mas desandou em 2024. O que causou esse descarrilhamento?
O ano passado de fato foi bom. O ministro Fernando Haddad teve um belo desempenho, aprovou várias medidas no Congresso, em geral, corretas. O arcabouço obteve uma equação bem-feita, mas com dois problemas.
Quais?
O primeiro problema é que ele era insuficiente. Não por problema do arcabouço fiscal em si, mas pelo ponto de partida – foi contaminado pela emenda constitucional da transição. De acordo com o dado de superávit primário estrutural do governo central, Paulo Guedes passou para Fernando Haddad um primário estrutural zerado. Mas o dado da Instituição Fiscal Independente (IFI) para o ano passado há um déficit de 1,6% do Produto Interno Bruto, que representa justamente a PEC da transição – não tem nada a ver com a atuação do ministro Haddad. A PEC [que permitiu ao ao novo governo aumentar em R$ 145 bilhões o teto de gastos] agravou uma situação fiscal que já era grave.
E o segundo problema?
Apesar do desenho correto, o arcabouço tem duas inconsistências. Primeiro, a vinculação dos mínimos constitucionais de saúde e educação à receita. Outra inconsistência é a regra do salário-mínimo, que é em cima do crescimento real do PIB agregado e não do PIB per capita. São regras que requerem que linhas do orçamento público cresçam mais rapidamente do que o gasto total.
“O arcabouço fiscal é insuficiente e em inconsistências”
Então, essa vinculação dos gastos de saúde e educação está minando o arcabouço?
O problema maior não é a vinculação, é onde você vincula. A vinculação atual, na receita, é muito ruim por dois motivos. Primeiro, porque a receita é variável e o gasto público – principalmente saúde e educação, associados à demografia – varia pouco. Então, não faz sentido vincular alguma coisa que é estável numa base instável. Segundo, a vinculação de saúde e educação é feita a uma taxa de crescimento. Mas, como disse, essa taxa não pode ser diferente da taxa de crescimento do gasto global dado pelo arcabouço.
Qual seria a solução?
O governo teria de fazer uma emenda constitucional indicando que a vinculação da taxa de crescimento dos mínimos constitucionais em saúde e educação será dada pela taxa de crescimento do teto dos gastos do arcabouço fiscal, estabelecido por lei complementar. Com isso, mantém-se a vinculação sem ter o problema de ligá-la a uma base muito volátil, além de tornar o arcabouço fiscal internamente consistente.
A regra de valorização do salário-mínimo, idealizada pelo presidente Lula após o estabelecimento da regra fiscal, não bota mais pressão no arcabouço?
O presidente Lula é um político inteligente e experiente, que já cumpriu dois mandatos presidenciais. Mas as escolhas que ele faz estão produzindo um descalabro fiscal. É até difícil de entender. Como ele quer que o salário-mínimo cresça mais do que a economia? “Ah, mas o salário-mínimo está crescendo com o PIB”. Mas os gastos vinculados ao mínimo representam o crescimento do salário-mínimo real vezes o número de beneficiários.
Qual o efeito disso?
O arcabouço fiscal estabelece uma taxa de crescimento para o gasto global, mas não pode haver outra regra que pegue itens muito importantes da despesa e obrigue que esses itens tenham uma regra de crescimento maior do que a regra de crescimento global, porque senão as outras linhas do orçamento público vão ser totalmente esmagadas. Ora, se o gasto público fosse 10% do PIB, tudo bem, o mínimo pode crescer. Mas o gasto público já é de 35% do PIB. Não tem mais espaço para o gasto público crescer como proporção do PIB. Essa regra do mínimo agravou o problema.
A equipe econômica tentou demover o presidente…
Já vi na imprensa o próprio ministro Haddad dizendo que tentou convencer o presidente que a regra de indexação do mínimo não era razoável. E ele perdeu esse debate. Estranho o presidente Lula não entender essa verdade aritmética.
Quando essas inconsistências começaram a minar o arcabouço?
O arcabouço vinha bem. No segundo semestre do ano passado, a situação internacional ajudou muito, apareceu uma desinflação muito mais forte do que inicialmente se imaginava. No fim do ano, o mercado financeiro internacional previa seis cortes de taxa de juros em 2024. E, com a perspectiva de juro despencando lá fora, se ganha tempo. Na prática, a calma do ano passado permitia perceber que havia essas inconsistências no arcabouço, mas tínhamos tempo para abrir o ano.
O que mudou?
Tivemos três leituras muito ruins da inflação americana no primeiro trimestre, principalmente em serviços. E aí as pessoas ficaram muito preocupadas. Essa revisão americana detonou um processo aqui dentro de avaliação de que não íamos chegar inteiros até o fim do mandato do presidente Lula. Então, a piora que houve advém um pouco desses fatos.
O cenário recente foi marcado por expressiva desvalorização do real. Levando-se em conta os indicadores de inflação e PIB, não há exagero nessa escalada do dólar?
O mercado que produz esses preços é um mercado de competição perfeita, composto por muitos operadores. E, por outro lado, o câmbio é flutuante. Então, não tem ataque especulativo. Agora, se olhar os fundamentos, o Brasil está barato, o câmbio está muito desvalorizado. Tem uma conta que faço a cada trimestre com o economista Lívio Ribeiro, do FGV Ibre. Temos um modelo que é um câmbio de equilíbrio de longo prazo, dadas as condições de competitividade comercial da economia brasileira. Esse câmbio, para nós, seria hoje de R$ 4 por dólar. A economia brasileira está super barata. Se o Brasil conseguir arrumar a política fiscal, o espaço que tem para valorizar o câmbio é gigantesco.
“A economia brasileira está super barata. Se o Brasil conseguir arrumar a política fiscal, o espaço que tem para valorizar o câmbio é gigantesco”
Quais são as opções do governo nessa disputa com o Congresso em torno desoneração da folha e de jabutis que acabam impactando o equilíbrio fiscal?
O presidente da Câmara, Arthur Lira, tem dado demonstrações de colaboração na área econômica desde o começo do mandato do presidente Lula. Ajudou na tramitação da PEC da Transição, da reforma tributária e de várias medidas da equipe econômica. Mas o presidente Lula tem que chamar o Congresso, tem que sentar e tem que negociar.
A bola, então, está com o presidente da República?
O presidente Lula tem que perceber que tem um problema fiscal. Parece que ele não está ciente ainda. Se a liderança do País não reconhece o problema, o problema não vai ser encaminhado. O sistema presidencialista no Brasil dá muita força ao chefe do Executivo. Os últimos presidentes, Dilma, Temer e Bolsonaro, foram inábeis na relação com o Congresso. Portanto, tivemos muitos anos seguidos com uma Presidência pouco atenta à defesa do interesse difuso. Isso fortalece os grupos de pressão.
O que o presidente deve fazer?
Existe um problema de coordenação e essa coordenação tem de partir da Presidência da República. O presidente Lula precisa construir uma coalizão a partir de um programa de governo consensuado. E compartilhar o governo: entregar ministério e estatal dentro de um programa que vai ser executado conjuntamente. Quando o presidente faz isso, o custo do dia a dia diminui, porque os parceiros já estão comprometidos e remunerados.
Lula perdeu a mão na articulação política?
Ele precisa querer fazer essa articulação. Ele me parece um pouco envelhecido, mais seduzido com a pauta de relações internacionais e menos com o dia a dia na relação do Executivo com o Congresso.
Neste cenário, a aprovação da reforma tributária foi surpreendente?
Já disse mais de uma vez: trata-se da reforma estruturante mais importante feita no País desde o Plano Real. Eu acho que a reforma é um enorme avanço, porque ela vai reduzir muito o custo de conformidade, vai reduzir litígios. Tem outro aspecto muito positivo, pois vai explicitar o custo do Estado brasileiro para a sociedade, porque a alíquota vai ser mais clara. Tem gente reclamando que vai pagar mais, mas as pessoas já pagam, só que não percebem. Então, ao explicitar a alíquota vai gerar uma dinâmica positiva na sociedade.
“A reforma tributária vai mostrar o custo do Estado brasileiro para a sociedade”
Não há muitos regimes especiais?
Sim, mas no texto aprovado no Senado foi adicionado um artigo dizendo que os regimes especiais terão que ser avaliados a partir de um cálculo de custo-benefício a cada cinco anos. Isso, se for mantido, vai criar uma dinâmica de avaliar as políticas públicas. Porque uma alíquota diferenciada, uma alíquota menor, é uma política pública, é um subsídio. A política pública tem que ser avaliada se está gerando resultados ou não. Se não estiver gerando resultado poderá ser desfeita.
Há perspectiva de melhora de produtividade da economia com a reforma?
Vai ajudar muito. Não vai ser como no Plano Real, que estabilizou a economia e imediatamente começou a gerar resultados. Vai levar dez, 15 anos. Mas depois que estiver em fluxo, com padrões de comportamento bem digeridos, as empresas adaptadas e o processo rodando, vão começar a surgir os resultados. A redução de litígio, de custo de conformidade, a melhora na vocação do investimento e da produção certamente vão gerar um enorme ganho de produtividade.
Qual sua expectativa para a segunda parte da reforma, de tributação sobre a renda?
Acho que tem uma diferença importante em relação à reforma tributária sobre consumo, que vinha sendo discutida no Congresso desde 2017. Isso gerou na sociedade uma reflexão que foi se acumulando sobre o tema. Já a reforma sobre a renda não tem esse grau de amadurecimento, ou seja, não tem um diagnóstico na sociedade brasileira.
Isso é um problema?
Sim, porque existe uma dificuldade imensa, que vem da enorme desigualdade na sociedade. Ninguém se considera rico no Brasil. Se você perguntar se acha que tem de tributar os mais ricos, a maioria vai dizer que sim. Mas se perguntar às pessoas se elas se consideram ricas, elas vão dizer que não. Ou seja, todo mundo no País se considera classe média. E quando todos se posicionam como classe média, o subtexto é: ‘Esses ricos não pagam imposto!’ Ou seja, se cobrar direitinho, o problema fiscal do Brasil está resolvido…Essa percepção explicita a dificuldade que a sociedade tem de construir o diagnóstico, o que significa a opinião pública reconhecer que o problema está em nós mesmos – nós é que pagamos pouco imposto de renda
Vai sobrar para todos…
Vai ter de mexer. Impor um limite para gasto médico que é possível descontar do Imposto de Renda. Velho rico vai ter que declarar imposto de renda. Velhice não é motivo para imunidade tributária. Se a pessoa é rica e está doente, não é motivo para imunidade tributária. O problema, portanto, é real, mas tem muito caminho a percorrer. Não acredito que a reforma tributária para a renda seja discutida e aprovada no ano que vem. O Brasil ainda não está preparado enquanto sociedade.
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