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Pastore e os caminhos e descaminhos do processo de estabilização

Livro póstumo do ex-presidente do BC detalha percurso até o tripé macroeconômico; regime passa atualmente por teste importante

Valor

O economista Affonso Celso Pastore escreveu o seu último livro em 2023. Publicada no fim de julho, poucos meses depois de sua morte, em fevereiro, a obra não poderia ser mais atual. Conhecido pelo rigor em seus estudos e análises, o ex-presidente do Banco Central (BC) esmiúça como o Brasil chegou ao atual regime de política econômica, o tripé macroeconômico, formado por regime de metas de inflação, câmbio flutuante e responsabilidade fiscal, numa perspectiva histórica, tratando das idas e vindas nesse processo.

Intitulado “Caminhos e Descaminhos da Estabilização”, editado pela Portfolio/Penguin, o livro de Pastore vem a público num momento em que o tripé macroeconômico passa por um teste importante. As incertezas sobre o compromisso do governo com o equilíbrio das contas públicas levam a sérios questionamentos sobre a “perna” fiscal do regime de política econômica, adotado desde 1999. Já as críticas seguidas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao BC e ao nível dos juros também alimentam dúvidas sobre a política monetária a partir de janeiro de 2025, quando Roberto Campos Neto deixará a presidência da instituição e um nome indicado pelo atual governo assumirá o cargo.

Na semana passada, os economistas Persio Arida, Rogério Werneck, Mario Mesquita e Ilan Goldfajn, que escreveu o prefácio, comentaram o livro de Pastore no Centro de Debate de Políticas Públicas (CDPP). O risco ao tripé macroeconômico foi um dos principais temas em discussão.

Ao falar do impacto da leitura do segundo capítulo, em que Pastore trata do caminho rumo às metas de inflação e à flutuação cambial, Werneck, professor da PUC-Rio, observou que é “impossível não ser tomado pela estranha e aflitiva sensação de que nós estamos assistindo ao mesmo filme, rodado ao contrário e rapidamente”. Para ele, assiste-se ao “desmantelamento do tripé, ou à sua descontrução, para usar uma palavra mais leve”. A perna do superávit primário (que exclui gastos com juros) já se foi e não dá para enxergar quando voltará a ficar de pé, afirmou Werneck. “Não há nenhum exercício de dinâmica da dívida que permita supor hoje sustentabilidade fiscal nos próximos 15 anos. Tripés não ficam de pé só com duas pernas. E Deus sabe o que vai ocorrer com a condução da política cambial e da política de metas de inflação depois de 1º de janeiro de 2025.” No começo do ano que vem, haverá a mudança no comando do BC.

Na introdução ao livro, Pastore explica sem rodeios o tema e o objetivo da obra. “Depois de uma longa história de inflações crescentes e de sucessivos fracassos dos ‘planos heterodoxos’, aprendemos que o controle da inflação requer uma âncora nominal, que desde 1999 vem sendo exercida pela política monetária organizada no regime de metas de inflação e de câmbio flutuante”, escreve ele.

“Também aprendemos que, para cumprir o mandato de manter a inflação na meta, o Banco Central precisa ter independência no uso do instrumento, que por sua vez é a taxa de juros. Por fim, aprendemos que, devido à nossa longa história de dominância fiscal, e diante de uma taxa de juros real maior do que a de crescimento econômico, é necessário gerar superávits fiscais primários que mantenham a dívida pública dentro de níveis sustentáveis, que se forem ultrapassados devem obrigar o governo a elevar os superávits primários, dimensionando-os para trazer a dívida pública de volta aos níveis dos quais ela se afastou”, completa ele. Esse é “um regime de política econômica cujo apelido é ‘tripé da política macroeconômica’, que vem sendo mantido pelos sucessivos governos, com o qual conseguimos afastar o risco da dominância fiscal, manter a inflação sob controle, e que nos permitiu enfrentar, com custos econômicos e sociais baixos, os choques de grande magnitude impostos pela crise financeira global, em 2008, e pela pandemia, em 2020”.

O tripé está em vigor há 25 anos, tendo se iniciado na segunda fase do Plano Real, em 1999. “Mas logo após a reforma monetária de 1994 a âncora que prendia o nível de preços não eram as metas de inflação e o câmbio flutuante, mas o regime de câmbio fixo”, diz Pastore. Ele observa que essa não foi a primeira vez em que o país esteve nesse regime. Com isso, o primeiro capítulo começa com uma nota sobre a experiência do Brasil no regime de câmbio fixo, ocorrido entre o final da Segunda Guerra Mundial e as reformas do Programa de Ação Econômica do Governo (Paeg), em 1966.

“Naqueles anos, o Brasil ainda não tinha um banco central, sendo a política monetária executada de forma precária por um departamento do Banco do Brasil. Na ausência do instrumento correto para corrigir os desequilíbrios no balanço de pagamentos, recorremos a frequentes restrições ao comércio internacional, o que encareceu as importações e plantou as sementes do protecionismo, do qual nunca mais nos livramos”, diz ele. Nos dois capítulos seguintes, Pastore detalha o longo caminho para o tripé macroeconômico e o seu processo de consolidação. Nos capítulos 4 e 5, trata das crises internacionais de 2008 e 2011 e como a política econômica brasileira reagiu a elas; no capítulo seguinte, discute o impacto da pandemia da covid-19.

No epílogo, por fim, Pastore faz uma “advertência alta e clara”, como ele mesmo a define, e extremamente atual. “No Brasil, o espaço fiscal, definido como a flexibilidade para aumentar os gastos, é muito estreito ou mesmo inexistente. Embora o Banco Central tenha plena liberdade de mover a taxa de juros em torno da taxa neutra [aquela que permite o país crescer sem pressões inflacionárias] em uma intensidade que depende dos desvios da inflação em relação à meta, o que fixa a taxa neutra de juros é a política fiscal, e na determinação da taxa real de juros de equilíbrio entram, também, os prêmios de risco que crescem com o aumento da dívida pública.”

Em seu comentário, o ex-presidente do BC Persio Arida disse que, com “processos eleitorais a cada quatro anos e a estabilidade de preços sendo um bem público”, dificilmente os governantes tendem a deixar o país inflacionar, “porque simplesmente perdem a eleição ou não fazem o sucessor”. Mas Arida fez o seguinte questionamento. “Isso é válido até que ponto? Nós temos o tripé com uma perna que está faltando. Nada indica que isso venha a ser resolvido ou reposto num horizonte razoável. Até que ponto a política monetária sozinha consegue segurar as expectativas de inflação?”

Arida disse que sempre pensou ser verdade a ideia de que os governantes fariam o necessário para manter a estabilidade de preços, mas indagou: isso ocorrerá mesmo desta vez ou será necessária uma enorme crise para que a política econômica se mobilize na direção correta? “Se Pastore estivesse entre nós, certamente eu colocaria essa questão a ele e eu imagino que ele diria que seria preciso ter uma enorme crise, sim, caso contrário a racionalidade não vai imperar.”

Economista-chefe do Itaú Unibanco, Mario Mesquita falou, entre outros pontos, da análise de Pastore no livro sobre os descaminhos da estabilização. No governo de Dilma Rousseff, “houve descaminho na política fiscal e na política monetária”, disse Mesquita, ex-diretor de Política Econômica do BC. As expectativas de inflação se desancoraram, e Pastore foi um dos primeiros a calcular que o BC, naquele período, trabalhava com uma meta implícita, mais alta que os 4,5% do alvo da época, O BC, na verdade, trabalhava com um número mais perto do topo da meta.

Mesquita tratou ainda do epílogo do livro, em que, segundo ele, Pastore faz “duas advertências simples”, trazendo a lição do livro. A primeira é que os BCs devem manter o foco em mirar a ancoragem da inflação para a meta. A segunda é não se deve esperar muito da expansão fiscal, como fazem parte da classe política e alguns economistas, disse Mesquita. Esse expansionismo tende a elevar a taxa neutra de juros, sem ganhos perceptíveis para a economia.

No último parágrafo do epílogo, Pastore pergunta: “Qual será a reação do governo quando o crescimento econômico se reduzir devido à política monetária restritiva?” Para ele, “a confiança do governo de que um espaço fiscal maior gere crescimento pode levá-lo a aumentar ainda mais os gastos, com reflexos mais acentuados sobre a taxa neutra de juros e os prêmios de risco. “Esse é o teste que revelará se o arcabouço é ou não o que o país precisa. Da mesma forma, será que o governo dará ao Banco Central a liberdade de cumprir seu mandato ou exigirá que siga o caminho de Dilma Rousseff, pressionando por taxas de juros mais baixas? Um novo capítulo de nossa história dará a resposta.”

No prefácio, o presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Ilan Goldfajn, diz que “um regime de política econômica cujo sucesso o fez transpassar diferentes governos precisa ter sua história contada para que seja reforçado e trabalhado continuamente, evitando cair na tentação frequente das soluções fáceis e de curto prazo. Assim vejo a maior contribuição deste livro, que recomendo fortemente, e que tem todos os elementos para se tornar um clássico econômico.”

O livro de Pastore evidencia a importância do tripé macroeconômico e como a sua construção foi árdua. Os próximos passos do governo na política fiscal e do BC na política monetária vão mostrar o tamanho do risco à sobrevivência do regime adotado desde 1999, respondendo à pergunta de Pastore.

Link da publicação: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2024/08/14/pastore-e-os-caminhos-e-descaminhos-do-processo-de-estabilizacao.ghtml

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