A leitura de Pastore traz à mente a preocupante desconstrução do aparato de condução da política macroeconômica
Rogério Furquim Werneck
Globo
Há poucos dias (7 de agosto), o Centro de Debate de Políticas Públicas (CDPP) promoveu em sua sede, em São Paulo, oportuna homenagem a Affonso Celso Pastore, ensejada pelo lançamento de seu excelente livro póstumo, “Caminhos e descaminhos da estabilização: uma análise do conflito fiscal-monetário no Brasil”, editado pela Portfolio-Penguin.
Junto a Persio Arida, Mario Mesquita e Ilan Goldfajn, tive a satisfação de participar do painel inicial que deflagrou discussão mais ampla sobre o livro, entre os muitos amigos e admiradores de Pastore que prestigiaram o evento.
Não faria sentido fazer aqui nova resenha do livro. Mario Mesquita já se desincumbiu muito bem disso, em longo e primoroso artigo que se estendeu por duas páginas inteiras do Estadão do próprio dia 7.
Mais vale salientar aqui a experiência perturbadora que foi ler o livro logo agora, em meio à problemática fase que vem atravessando a condução da política macroeconômica no país.
Parte importante da análise de Pastore concentra-se no longo processo de construção institucional e penoso aprimoramento da condução da política econômica que, aos trancos e barrancos, afinal, redundou no que passou a ser conhecido como tripé da política macroeconômica: a combinação de câmbio flutuante, política de metas para inflação e geração sistemática de superávits primários capazes de manter o endividamento público em trajetória sustentável.
A manutenção do tripé, desde o final dos anos 90, não tem sido fácil. E, como bem relata Pastore, em meados da década passada, o país viu-se forçado a encarar o desafio de reconstruir o tripé, após a devastação deixada pelo mandato e meio de Dilma Rousseff.
Passados não mais que oito anos, o Brasil se vê mais uma vez às voltas com nova e alarmante desconstrução do tripé. A política de geração de superávits primários compatíveis com a sustentabilidade fiscal já se foi. E é difícil vislumbrar quando voltará a ser adotada.
Não há a menor chance que seja ainda neste governo. Até onde a vista alcança, o tripe permanecerá com não mais que duas pernas. E o endividamento público, em trajetória explosiva.
Mas ainda há bem mais em jogo. Deus sabe o que ocorrerá com a política de metas para inflação a partir de janeiro de 2025, quando o governo, afinal, assumir pleno controle do Banco Central.
Quanto a isso, seria muito bom se uma boa alma pedagógica tentasse explicar ao presidente Lula da Silva a sólida e clara argumentação de Paul Krugman, na sua última coluna no New York Times, sobre as vantagens inequívocas de conferir autonomia operacional a bancos centrais.
Por incrível que possa parecer, o tema voltou a ganhar importância nos EUA. Donald Trump vem também ameaçando meter a mão na condução da política monetária, caso venha a ser eleito.
É natural que ainda haja quem, entregue ao negacionismo, resista a reconhecer que o tripé vem sendo desconstruído. Mas a verdade é que o autoengano quanto a tal retrocesso está ficando a cada dia mais difícil.
Sobre isso, vale ressaltar aqui uma virtude admirável de Pastore que, a meu ver, não tem sido devidamente destacada. Seja como acadêmico, como intelectual público ou como consultor, Pastore jamais deixou de dizer e escrever o que precisava ser dito.
Não tinha papas na língua. Não dava refresco para quem estava no governo, qualquer que fossem as relações pessoais que pudesse ter com membros da equipe econômica. Não afrouxava nunca. Nada de uma no cravo, outra na ferradura. Eram todas no cravo.
No debate econômico de um país tão propenso ao autoengano, falta gente com este perfil. Mais uma razão para sentirmos muita falta de Affonso Celso Pastore. Ainda estivesse entre nós, estaria certamente empenhado, sem papas na língua, como sempre, em abrir nossos olhos para o que, de fato, vem acontecendo com o aparato de condução da política macroeconômica tão duramente construído no país ao longo de décadas.
Link da publicação: https://oglobo.globo.com/economia/rogerio-furquim-werneck/coluna/2024/08/o-tripe-de-duas-pernas-da-politica-macroeconomica.ghtml
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