Folha
No início desse mês, uma reportagem no jornal New York Times chamou-me a atenção. O tema do longo artigo é o projeto de um cientista da Universidade de Chicago que promove o resfriamento da Terra através da emissão de grandes volumes de dióxido de enxofre na estratosfera. O método é conhecido como geoengenharia solar.
A ideia deriva do fenômeno comprovado de redução da temperatura do hemisfério Norte em cerca de 0,5ºC, por um ano, após a erupção nas Filipinas do vulcão Pinatubo, que lançou 17 milhões de toneladas do composto químico na estratosfera em 1991. Durante esse período, a luminosidade na Terra não se alterou, observando-se apenas que os momentos de lusco-fusco adquiriram tons mais alaranjados.
O cientista argumenta que mesmo uma redução de apenas 1ºC na temperatura da Terra nos próximos cem anos evitará a morte de milhões de pessoas por efeitos do aquecimento. Diz ainda que o custo do método é relativamente baixo e que há uma boa compreensão dos riscos, que não são tão severos quanto apontado pelos críticos, sendo ainda amplamente compensados pelos benefícios.
O jornalista, contudo, é cuidadoso ao entrevistar diversos cientistas e ambientalistas que se opõem à ideia e apresentam suas razões, sendo as principais:
– Ao impactar a estratosfera (entre 10 km e 50 km acima da superfície), o método afetaria toda a Terra, sendo imprevisíveis os seus efeitos, podendo, por exemplo, alterar o regime de chuvas, irrigando regiões áridas, enquanto desertifica áreas férteis. Da existência desse risco deriva a questão delicada da governança: quem teria a delegação para lançar o produto aos céus? Como se tomariam essas decisões?
– Trata-se de um método paliativo, que não ataca a causa do aquecimento, que é sabidamente a emissão de gases de efeito estufa (GEE). Nesse sentido, ao atenuar as consequências das atividades que efetivamente causam o aquecimento, terminaria por estimulá-las, caracterizando uma situação de risco moral. Um crítico compara o método aos opioides usados para aliviar a dor; não curam o problema e mascaram o seu agravamento.
– Finalmente, cria-se o risco de que, caso o método tenha de ser descontinuado após algum tempo, haja uma intensa elevação na temperatura da Terra em um intervalo de apenas 5 a 10 anos, algo comparável ao ocorrido quando da extinção dos dinossauros, segundo um cientista consultado. A esse fenômeno dá-se o nome de “termination shock”.
“Termination Shock” é também o título de um romance de “ficção climática” escrito por Neal Stephenson e publicado em 2021. O livro descreve um futuro próximo caótico, em que o agravamento dos efeitos do aquecimento global leva um bilionário texano a aplicar exatamente o método de emissão de dióxido de enxofre na estratosfera. Não chega a ser um spoiler se eu disser que a história não termina bem.
O que me surpreendeu muito ao deparar-me com o artigo foi constatar que em apenas três anos a geoengenharia solar saiu da condição de elemento de ficção apocalíptica para as páginas de um dos mais importantes jornais americanos com ares de alternativa plausível, ainda que arriscada.
Nesses mesmos três anos, as previsões da ciência relativas ao aquecimento global foram confirmadas por um aumento significativo de desastres ambientais. Tivemos graves secas e ondas de calor que provocaram um recorde de incêndios florestais no hemisfério Norte em 2023, inundações como a do Paquistão em 2022 que afetaram um terço do país e mataram 1.500 pessoas, para não mencionar a do Rio Grande do Sul, que todos conhecemos.
Tivemos também um aumento da intensidade dos furacões na América do Norte e assistimos à elevação recorde do nível médio do mar assim como da temperatura da superfície oceânica do Atlântico Norte, para cujas graves consequências a comunidade científica tem alertado insistentemente.
Seria de esperar que todos esses fatos despertassem uma reação decisiva daqueles com poder de influenciar os rumos do mundo. Fariam parte dessa reação o estabelecimento de uma taxa global para as emissões de GEE e outras medidas que promovessem substituição tão rápida quanto possível dos combustíveis fósseis na matriz energética global, de modo a reduzir a zero essas emissões até 2050; o chamado “net zero”, imprescindível para que se limite o aquecimento a 1,5ºC ou 2ºC.
Mas não é o que verificamos. Em que pesem todos os investimentos em geração de energia limpa, seu crescimento tem sido inferior ao da demanda global por energia —que será ainda intensificado pelo crescimento do uso de inteligência artificial—, de modo que em 2023 a geração de energia por combustíveis fósseis atingiu um novo nível recorde.
Às dificuldades inerentes ao estabelecimento de uma governança global que promova a redução efetiva de emissões soma-se como elemento decisivo o empenho da indústria mundial de óleo e gás em criar obstáculos e protelar qualquer evolução nesse sentido.
Ante essas evidências de cegueira deliberada dos responsáveis pela ordem mundial e da recusa do mundo em arcar com o custo necessário para garantir a preservação continuada das condições de vida humana sobre a Terra, concluo a contragosto que o jornalista do NYT pode estar certo em admitir como plausível a hipótese do uso desses “opioides climáticos”.
Recentemente o articulista Martin Wolf afirmou em um artigo sobre a crise climática que, “em cem anos, nossa época será provavelmente lembrada como o tempo em que conscientemente optamos por legar um clima desestabilizado”. E concluiu: “Isso é um trágico fracasso”. Só uma atitude global enérgica pela redução acelerada do uso de combustíveis fósseis nos permitirá escapar a esse vaticínio.
O imediatismo das decisões políticas, porém, nos levará à adoção de alternativas aparentemente indolores, como a geoengenharia solar, que lembram os “cuidados paliativos” ministrados aos doentes terminais.
Será necessário reagir a isso e precavermo-nos do poder de sedução de que o método se revestirá à medida que os eventos se agravem. Eu mesmo, após a enorme tristeza de ver o trabalho de preservação do pantanal tão comprometido pelas queimadas do último mês, me pego sonhando com algum método fácil de redução das temperaturas. É preciso resistir.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2024/08/opioide-climatico.shtml
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