Folha
O céu esfumaçado da cidade de São Paulo nas últimas semanas reforça a preocupação dos paulistanos com as queimadas na Amazônia. Entre as dificuldades para o enfrentamento do problema, há uma que decorre da atuação de grupos de ambientalistas das nações desenvolvidas, pouco conhecida do público. Para entendê-la, algumas considerações prévias são necessárias.
As queimadas são consequência direta e indireta do desmatamento da Amazônia. Direta, porque os grileiros que ocupam ilegalmente áreas devolutas na região recorrem à queimada após o desmate para “limpar” a área para a pecuária. Indireta, porque o desmate da Amazônia tem reduzido o fluxo dos “rios voadores”: o vapor carregado pelos ventos que sopram da região para o Centro-Oeste e o Sudeste e contribuem decisivamente para o volume de chuvas nessas regiões. A seca cria condições favoráveis à propagação rápida dos focos de incêndio, dificultando sobremaneira o combate ao fogo, independentemente de sua origem acidental ou criminosa.
O desmatamento da amazônia desencadeia uma série de eventos que culminam na dramática conversão dos rios voadores nos dutos da fumaça e fuligem que cobriram boa parte do Sudeste e até mesmo do Sul do país. Reduzir o desmatamento, responsável por 46% das emissões de gases de efeito estufa no Brasil, é a principal prioridade da nossa agenda climática.
Para terem efeitos duradouros, as medidas de combate ao desmatamento não podem se restringir à aplicação da lei ambiental por meio de operações de comando e controle. Será necessário principalmente fazer com que a manutenção da floresta em pé seja capaz de gerar condições de vida para a população local, melhores do que as propiciadas pela sua derrubada, como garimpo ilegal, grilagem e agropecuária em terras desmatadas ilegalmente.
Nesse ponto, podemos explicar a afirmação do primeiro parágrafo.
Uma das principais fontes de recursos com que se pode contar para fazer frente ao desmatamento é a venda de créditos de carbono decorrentes da restauração de áreas degradadas e preservação da floresta em pé. Os recursos assim obtidos se transferem à população local mediante impostos, investimentos em bioeconomia e outros canais de transmissão, propiciando o estímulo necessário para o abandono das atividades que destroem a floresta em favor daquelas que a preservam.
Enquanto o Brasil procrastina a aprovação e o desenvolvimento do seu mercado interno de carbono, desenvolve-se nos países ditos industrializados uma campanha de desmoralização dos créditos de carbono provenientes da preservação (conhecidos como Redd+) e recuperação florestal.
Pode-se identificar essa campanha em artigos como: “A iminente apropriação de terras na África para créditos de carbono” (Financial Times, dezembro 2023) ou “Como os ‘caubóis do carbono’ estão lucrando em áreas protegidas da Amazônia” (The Washington Post, julho 2024); ou ainda “Análise mostra que mais de 90% dos créditos de carbono de florestas tropicais emitidos pelo maior certificador não têm valor” (The Guardian, janeiro de 2023). Esse último é bastante revelador, por ser o Guardian um jornal reputado por sua preocupação ambiental.
Essa é apenas uma amostra; houve vários artigos de mesmo teor. Não cabe aqui discutir em cada caso os méritos das análises e acusações; o que chama a atenção é a recorrência do assunto em grandes jornais, enquanto são raros os artigos laudando casos de empreendimentos bem-sucedidos.
“Jabuti trepado em árvore ou é enchente ou é mão de gente”, diz a sabedoria popular. A mão de gente, no caso, parece ser de grupos de ambientalistas de países desenvolvidos: pessoas honestamente preocupadas e ocupadas em combater o aquecimento global, que exercem grande influência sobre as discussões do clima.
Se ainda alguma dúvida havia, ela se dissipou com o episódio ocorrido no SBTi (sigla em inglês para “fundamentos para definição de metas baseadas na ciência”), uma organização de renome internacional que valida e aprova as metas de redução de emissões propostas por empresas do mundo todo. Em abril deste ano, uma manifestação oficial que favorecia a ampliação do uso de créditos de carbono para compensar emissões gerou críticas de cientistas e ONGs, que acusaram a organização de promover o “greenwashing”. O movimento culminou na exigência da renúncia do presidente pela própria equipe do SBTi, o que acabou ocorrendo.
A razão que leva ambientalistas de países desenvolvidos a se opor à compensação de emissões de carbono é nobre; não desejam que suas empresas industriais, de energia e de transporte optem pela “saída fácil” de comprar créditos de carbono, em vez de aplicarem-se na redução de suas próprias emissões. Ocorre que, ao atacarem a compensação de emissões, ferem de morte a viabilidade da proteção de florestas tropicais, gerando efeito inverso ao desejado, posto que não há fronteiras na atmosfera. É o chamado “fogo amigo”.
Essa é apenas uma amostra; houve vários artigos de mesmo teor. Não cabe aqui discutir em cada caso os méritos das análises e acusações; o que chama a atenção é a recorrência do assunto em grandes jornais, enquanto são raros os artigos laudando casos de empreendimentos bem-sucedidos.
“Jabuti trepado em árvore ou é enchente ou é mão de gente”, diz a sabedoria popular. A mão de gente, no caso, parece ser de grupos de ambientalistas de países desenvolvidos: pessoas honestamente preocupadas e ocupadas em combater o aquecimento global, que exercem grande influência sobre as discussões do clima.
Se ainda alguma dúvida havia, ela se dissipou com o episódio ocorrido no SBTi (sigla em inglês para “fundamentos para definição de metas baseadas na ciência”), uma organização de renome internacional que valida e aprova as metas de redução de emissões propostas por empresas do mundo todo. Em abril deste ano, uma manifestação oficial que favorecia a ampliação do uso de créditos de carbono para compensar emissões gerou críticas de cientistas e ONGs, que acusaram a organização de promover o “greenwashing”. O movimento culminou na exigência da renúncia do presidente pela própria equipe do SBTi, o que acabou ocorrendo.
A razão que leva ambientalistas de países desenvolvidos a se opor à compensação de emissões de carbono é nobre; não desejam que suas empresas industriais, de energia e de transporte optem pela “saída fácil” de comprar créditos de carbono, em vez de aplicarem-se na redução de suas próprias emissões. Ocorre que, ao atacarem a compensação de emissões, ferem de morte a viabilidade da proteção de florestas tropicais, gerando efeito inverso ao desejado, posto que não há fronteiras na atmosfera. É o chamado “fogo amigo”.
Situações em que diferentes atores compartilhando o mesmo objetivo último terminam por comprometer seu alcance em razão de interesses menores não são raras. Qualquer pessoa com experiência empresarial sabe da importância de administrar conflitos de interesse entre executivos ou departamentos, que terminam por desviar a empresa de seu propósito. Nesses casos, cabe ao líder da empresa promover uma política de incentivos e regras que alinhem os interesses dos diversos atores.
No caso da compensação de créditos de carbono, não parece que isso seja tão difícil. Uma alternativa, por exemplo, seria a determinação de um percentual máximo de suas emissões que empresas industriais poderiam compensar com créditos de carbono. Por um lado, cria-se um limite claro para a prática, e, por outro, garante-se a existência de um mercado para os créditos de carbono, fundamental para a preservação das florestas tropicais.
O mundo não dispõe de uma liderança única, como a maior parte das empresas, mas há foros internacionais nos quais essas questões se discutem. Caberia ao Brasil liderar diplomaticamente uma coalização de países com florestas tropicais em direção a um acordo global que garanta o mercado para seus créditos de carbono. A COP30 em Belém, chamada COP da Natureza, seria o teatro ideal para o anúncio desse acordo.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2024/09/fogo-amigo.shtml
As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.