Relato de ex-presidente do BC resgata episódios de período à frente da autoridade monetária e de carreira no setor financeiro
Valor
Um livro de memórias que está sendo lançado pelo ex-presidente do Banco Central (BC) e ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles relata uma tentativa de interferência direta do presidente Lula para a redução na taxa básica de juros e um plano abortado de demiti-lo quando se iniciava um ciclo de aperto monetário.
Ambos os episódios não são exatamente inéditos – já foram relatados anteriormente pelo Valor e publicados em um outro livro —, mas ganham novos contornos na versão contada pelo próprio Meirelles, às vésperas da sabatina no Senado do novo banqueiro central indicado por Lula, Gabriel Galípolo. Diretor de Política Monetária do BC, na semana passada Galípolo votou pela alta de 0,25 ponto percentual na taxa Selic, que dá início a um novo ciclo de aperto.
Nas palavras de Meirelles, foi assim a tentativa de Lula de fazê-lo baixar o juro: “Um dia, em 2007, véspera da reunião do Copom, Lula me ligou: ‘Meirelles, eu nunca te pedi nada’, ele começou. ‘É verdade’, eu respondi. ‘Pois hoje eu vou te pedir. Vou te pedir que corte os juros, porque senão nós não vamos crescer os 5% da nossa meta. Você precisa colaborar e baixar a taxa de juros’.”
Meirelles afirma que ouviu o pedido em silêncio e encerrou a conversa da forma mais polida possível. “Fique tranquilo, presidente, que vamos fazer o melhor para o Brasil”, conta. Segundo ele, o Comitê de Política Monetária (Copom) manteve a taxa no mesmo patamar porque não havia motivo factual para tomar qualquer outra decisão.
Ele não diz, exatamente, quando foi essa conversa, mas pelo contexto deve ter ocorrido em outubro ou dezembro de 2007, únicas reuniões daquele ano em que a taxa Selic foi mantida estável. Meses antes, a extensão e o ritmo desse ciclo de flexibilização monetária foram motivos de controvérsia dentro do Copom, com três votos dissidentes em julho daquele ano contra uma queda de 0,5 ponto percentual da taxa Selic.
O relato de Meirelles nas suas memórias difere um pouco de suas declarações publicadas em outro livro, “Eles não são loucos: Os bastidores da transição presidencial FHC-Lula”, escrito pelo jornalista João Borges. Nele, Meirelles conta que o pedido de Lula teria sido para que o corte de juros fosse mais forte que o que realmente ocorreu.
Alertado pelo Valor sobre as duas diferentes versões, Meirelles disse por nota que a correta é a narrada na suas memórias, que coloca o episódio no segundo semestre de 2007. “Na realidade dos fatos, o Copom manteve o mesmo patamar de juros por entender que esta era tecnicamente a melhor decisão”, afirma.
Em entrevista ao Valor sobre o livro de memórias, Meirelles diz que “não atribui grande gravidade” ao telefonema de Lula. “Foi uma tentativa dele, normal, e que não prejudicou em nada.”
Meirelles argumenta que não é incomum banqueiros centrais serem pressionados a praticar juros menores pelo setor público e privado. “Em reuniões com o mercado, com empresas, era normal que, de vez em quando, um empresário, um economista fizesse um pedido. É um ruído que compete ao Banco Central simplesmente não ouvir.”
Em países desenvolvidos, também houve tentativas de interferir no trabalho de banqueiros centrais. Paul Volcker, que patrocinou no Federal Reserve (Fed, o banco central americano) um dos mais draconianos apertos monetários da história, relata em seu livro de memórias que foi pressionado em 1984 pelo ministro da Casa Civil de Ronald Reagan, James Baker, para facilitar a reeleição de seu chefe.
Outra história que ganha novas cores é a sua quase demissão de Meirelles pelo presidente Lula em maio de 2008, quando o BC começou a embarcar num ciclo de aperto monetário. A economia estava aquecida e a inflação subia.
“Era maio de 2008, e concluí que era hora de ir embora. Havia um zum-zum-zum no mercado de que interlocutores do presidente estavam sondando possíveis nomes para o BC, e aquilo foi a gota d’água. Procurei o presidente Lula. ‘Presidente, a economia está muito bem, crescendo, inflação na meta, criamos empregos… para mim é o momento ideal para sair’”, diz no livro.
Meirelles afirma que Lula não deu uma resposta direta a esse pedido de demissão e cavou um jantar na casa do banqueiro central. “‘Meirelles, você nunca me convidou para jantar na sua casa…’. Eu disse: ‘Ué, presidente, está convidado’. Combinamos então um jantar na minha casa, que ficava às margens do Lago Paranoá.” Mas Lula deixou de comparecer na hora marcada, apesar de a presidência da República ter destacado agentes para garantir a segurança de Lula, deixando Meirelles e sua esposa na mão.
Uma semana depois, em reunião com Lula, questionou sobre a sua demissão. “‘Meirelles, nunca mais fale disso’, ele me respondeu. E nunca mais falamos disso.” No livro, Meirelles diz: “confirmada a minha independência, fiz o que precisava ser feito. Em abril, aumentamos a Selic de 11,25% para 11,75%.”
A narrativa do ex-banqueiro central é uma variação das versões sobre o ocorrido que circularam anteriormente, e apresenta uma inconsistência na ordem cronológica dos fatos. Na realidade, a conversa dele com Lula ocorreu quando BC já subia o juro.
O Copom deu uma indicação firme de alta de juros em março de 2008, na sua ata, que revelou que o colegiado “discutiu a opção de realizar, neste momento, um ajuste na taxa básica de juros”. O ciclo de alta começou, efetivamente, em abril de 2008. E a conversa entre Lula e Meirelles foi em maio de 2008.
A sequência cronológica não tem maiores consequências para a biografia do próprio de Meirelles, já que o que importa é que nas duas ocasiões, em 2007 e 2008, o Copom fez o trabalho necessário para baixar a inflação. Mas esse reparo é importante porque sugere que Lula tentou interromper, com a substituição de Meirelles, um ciclo de aperto monetário já em curso.
Também há mais de uma versão sobre de quem foi, efetivamente, a iniciativa da demissão, se de Meirelles ou Lula. A informação da tentativa de demissão foi publicada de forma mais completa pela primeira vez pelo Valor em 2009, numa reportagem sobre os bastidores da crise financeira global. Ela conta que Lula pretendia demitir Meirelles e substituí-lo pelo economista não ortodoxo Luiz Gonzaga Belluzzo, mas queria que fosse do banqueiro central a iniciativa de sair. Por isso enviou emissários para convencê-lo a se demitir.
Anos depois, em sua delação premiada, o ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci sustentou que foi ele o emissário enviado por Lula para convencer Meirelles a sair, com o argumento de que ele deveria deixar o BC quando estava por cima e usar o capital político acumulado para tentar uma candidatura ao governo de Goiás. Na delação, Pallocci acusou Lula de querer trocar Meirelles para criar um esquema de caixa 2 no BC.
“Não faziam parte das informações disponíveis naquele momento se os motivos dos boatos se referiam às afirmações que o ministro Palocci fez à Polícia Federal em 2018 ou uma tentativa de ‘abortar um processo de alta de juros’”, diz Meirelles, em nota. Segundo ele, “não houve sugestão envolvendo taxa de juros, além das costumeiras queixas em off à imprensa”.
As memórias de Meirelles também relatam um pouco dos bastidores das duas primeiras altas de juros que o Banco Central fez em 2003, logo depois de ele assumir o cargo. A Selic já estava alta, para combater um surto inflacionário nascido nas eleições presidenciais do ano anterior, quando o mercado receava a adoção de uma política fiscal e monetária irresponsável no futuro governo.
É inevitável fazer uma comparação com o momento atual, em que setores do mercado financeiro têm desconfianças se Galípolo terá independência e distanciamento do governo Lula para fazer o que for necessário com a Selic para controlar a inflação. Como em 2003, agora o Banco Central embarca num ciclo de aperto monetário. Não são poucos os que acham que Galípolo precisa subir os juros fortemente simplesmente para ganhar credibilidade.
Em 2003, depois de fazer uma primeira alta de juros, o trabalho de Meirelles foi atrapalhado por uma declaração do então ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, de que o Copom iria baixar a taxa na reunião seguinte. Em vez de cortar, o BC de Meirelles fez um novo movimento de alta, conquistando uma reputação de independência em relação a pressões políticas.
O aperto foi exclusivamente para reforçar a reputação do BC? Em entrevista ao Valor, Meirelles diz que não. “Subimos porque era necessário”, afirma. “Algumas dessas coisas podem até ter influenciado, não na decisão, mas nos dados, nas expectativas e na própria inflação. Mas olhávamos os dados técnicos.”
“Calma sob pressão: O que aprendi comandando o Banco de Boston, o Banco Central e o Ministério da Fazenda”, lançado pela Editora Planeta (vendas começam nesta segunda e haverá noite de autógrafos na terça, dia 24, às 19h, na Livraria da Travessa do Shopping Iguatemi, em São Paulo), é uma leitura rápida, com 191 páginas, mas tem muito mais do que apenas assuntos de política monetária. Ele conta causos de sua infância e juventude em Goiás e sobre como, no movimento estudantil, tomou gosto pela política. Também relata sua carreira e ascensão à presidência mundial do BankBoston, cargo nunca ocupado por um estrangeiro, e sua passagem pelo ministério da Fazenda, no governo Temer, além da aventura de sua candidatura presidencial.
Link da publicação: https://valor.globo.com/financas/noticia/2024/09/20/meirelles-conta-em-livro-que-lula-tentou-faze-lo-baixar-os-juros.ghtml
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