É perigosa a ideia de que vale tudo o que não afete o resultado primário
Folha
Desde o começo do ano repete-se o roteiro visto nesta semana: um pico de desconfiança sobre a capacidade do governo de controlar o crescimento da dívida faz os juros dispararem. A equipe econômica tenta acalmar os ânimos prometendo medidas de controle de despesa. Mas elas nunca vêm.
Há evidente veto político de Lula. A manobra de prometer e não entregar funcionou algumas vezes. Mas já está manjada.
Se por ora não dá para controlar a dívida reformando as regras de despesa, é preciso mudar o foco, priorizando o abatimento de dívida pública, encolhendo políticas que correm por fora das contas primárias.
Desde a pandemia, o Tesouro transferiu R$ 69 bilhões para fundos garantidores de empréstimos a pequenas e médias empresas. Na pandemia foi uma prioridade. Não se podia deixar todo mundo quebrar. Agora a prioridade mudou: ainda que haja mérito em dar garantias a empresas, tornou-se mais importante devolver parte desse dinheiro para o Tesouro, para abater dívida.
Os dois principais fundos garantidores (FGO e FGI-PEAC) têm patrimônio líquido somado de R$ 60 bilhões. Pelo menos metade disso poderia voltar para o Tesouro.
Em vez de desvincular R$ 20 bilhões do Fundo Social (lei 14.981/24) e outros R$ 20 bilhões de vários fundos orçamentários (PEC 66/23) para transferi-los ao BNDES e originar empréstimos, os recursos desvinculados deveriam ser usados para abater dívida. Prática usual nas últimas décadas.
O repasse de R$ 4 bilhões do Fundo Nacional de Aviação Civil para ampliar financiamento a companhias aéreas deveria ser revisto, e o saldo não gasto deste fundo deveria ser direcionado para quitar dívida, como sempre se fez.
Somente com essas providências seriam quitados R$ 74 bilhões em dívida (0,65% do PIB) em 2024. Essa sinalização reduziria as taxas de juros, melhorando a dinâmica da dívida.
Outros fundos recém-criados, como os de Desenvolvimento Tecnológico Industrial e o de Investimento em Infraestrutura Social, deveriam permanecer desativados.
Um governo sob crise de confiança também não pode se dar ao luxo de propor a flexibilização do controle fiscal de estatais dependentes sem explicar o que pretende com isso e quais as empresas beneficiadas. A desconfiança e os juros aumentam. O texto enviado ao Congresso deixa brechas para criatividades que desaguariam em mais dívida pública.
A política fiscal tem se limitado a atingir a meta de resultado primário. Isso não é um fim em si. Superávit primário tem por objetivo frear o crescimento da dívida. Não adianta atingir a meta e deixar a dívida crescer por outras vias não captadas nas estatísticas primárias.
Como agravante, as metas de primário até 2026 foram fixadas em valores insuficientes para estabilizar a dívida, e várias despesas têm sido retiradas da conta, como nos casos do Auxílio Gás e do Programa Pé de Meia, que somam algo como R$ 10 bilhões por ano. Outro fator a desgastar a credibilidade.
A mentalidade de que “vale tudo o que não afete o primário” precisa ser substituída por “atenção máxima a tudo o que afeta a dívida”.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcos-mendes/2024/10/sob-crise-de-confianca-governo-deve-mirar-controle-da-divida.shtml
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