O Brasil está diante de dois ajustes relevantes: gerar um superávit primário que reduza o endividamento do governo e repensar as prioridades do gasto público
Valor
As principais lideranças do país parecem estar se dando conta de que o quadro fiscal, precário faz tempo, se agravou. Alguns indicadores contam a história: relação dívida pública de cerca de 80%, taxas de juros reais (acima da inflação) que o governo paga em sua dívida de longo prazo batendo em 7%, expectativas de mercado para a inflação acima de 5% a perder de vista, e o dólar, que na virada do ano passado estava abaixo de R$ 5, beira os R$ 5,80. Ou seja, o mercado elevou bastante o tom de seus alertas.
Com frequência se ouve reclamações de que a Faria Lima, os bancos e o Banco Central são os responsáveis por esses sinais de alerta. Na verdade, eles resultam das crenças e das ações de todos os agentes econômicos. Dentre esses, destaca-se o governo, o maior devedor e o maior tomador de empréstimos.
O Arcabouço Fiscal proposto pela Fazenda no ano passado corretamente reconheceu a necessidade de um ajuste nas contas públicas, hoje claramente insustentáveis. As metas apresentadas incluem um superávit primário de 1% do PIB no último ano do atual mandato presidencial. Infelizmente, seu cumprimento parece pouco provável.
De qualquer forma, o ajuste necessário para estabilizar a dívida pública como proporção do PIB é maior do que 1%. Isso porque só de juros reais o governo paga mais do que 5% do PIB. Para estabilizar o tamanho da dívida, é necessário que seu crescimento seja igual ao crescimento do PIB. Vejamos as contas.
Quanto à economia, as perspectivas são modestas. A expansão fiscal recente da demanda agregada não é sustentável. O Brasil vem investindo muito pouco (menos do que 17% do PIB) e a produtividade não dá grandes sinais de vitalidade há décadas. Para não ser acusado de pessimista, trabalho com uma taxa de crescimento de 2,5%, aproximadamente igual à média anual desde o Plano Real.
A dívida cresce com o saldo primário e com a conta de juros. O primário realista para 2024, segundo a Instituição Fiscal Independente, é de um déficit em torno de 1% do PIB. Fazendo a conta, conclui-se que, para estabilizar a dívida/PIB, seria necessário um superávit primário de 3% do PIB, o que demanda um ajuste de 4% do PIB (de menos 1% para mais 3%).
Verdade que um ajuste fiscal convincente teria o dom de reduzir os prêmios de risco na economia, o que por sua vez reduziria a taxa de juros e estimularia o investimento. Permitiria, portanto, que um superávit primário menor do que 3% estabilizasse a razão dívida/PIB.
Que ajuste seria esse? O gasto do governo consolidado (todas as esferas e poderes) no Brasil subiu de 25% do PIB, há 35 anos, para cerca de 33% hoje. Nesse mesmo período, o investimento público caiu de um pico de 5% do PIB para menos do que 2%. Isso mesmo: os gastos subiram e o investimento caiu! Portanto, não temos “apenas” um problema fiscal macroeconômico – temos um problema sério de falta de prioridade no gasto.
A mais lamentável lacuna está no subfinanciamento do SUS, mas há outras. Além disso, estabilizar a dívida no atual patamar me parece de todo imprudente. Além dos juros elevados, que para cair exigem o tratamento fiscal, estamos vivendo uma era de grandes desafios, tais com mudança climática, epidemias, novas tecnologias, guerras e o avanço do autoritarismo.
O Brasil está, portanto, diante de dois ajustes relevantes: gerar um superávit primário que reduza o endividamento do governo e repensar as prioridades do gasto público. São desafios enormes, sobretudo quando se leva em conta que parte relevante dos ajustes dependem dos Estados e dos municípios.
No campo dos gastos, três contas chamam a atenção. Duas delas são fáceis de ver: a Previdência (de longe a que mais aumentou e segue aumentando) e a folha de salários são cada uma responsável por quase 40% do gasto público primário. São porcentagens totalmente fora da curva quando se compara internacionalmente. Não há solução crível para a armadilha fiscal que dispense reformas estruturais e um tanto radicais nessas duas áreas. Na área de pessoal, além de eliminar iniquidades, uma boa reforma administrativa teria o condão de aumentar a produtividade do próprio Estado. Ambas teriam impacto limitado no curto prazo, mas a médio prazo praticamente resolveriam a questão fiscal.
Há um terceiro tipo de gasto, menos visível, mas não menos importante: os gastos tributários do governo. São subsídios que hoje chegam a 6% do PIB. Incluem os regimes especiais do imposto de renda (Simples e Presumido, este ainda ausente das estatísticas), deduções do IRPF, empréstimos a juros abaixo de mercado etc. Seu impacto é muito regressivo e pouco transparente. Parte do assunto está em pauta, mas o ambiente político não me parece favorável a avanços. Pena que o PT, quanto tinha mais poder, não aproveitou a oportunidade. Espero que algum dia a ficha caia e permita a correção desses absurdos. Se eliminados, aumentariam a carga tributária, algo que me parece inevitável (sem prejuízo de discussões futuras sobre o tamanho do Estado).
No momento, as fragilidades fiscais do Brasil não estão sendo tratadas com a profundidade necessária. O orçamento é rígido e repleto de vinculações. Itens de peso não estão sequer em pauta. Contingenciamentos não são o melhor remédio, e não darão conta do recado. Sem esses ajustes, o país não terá condições de lidar com emergências futuras. E mais – não crescerá de forma acelerada, equitativa e sustentável.
Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/hora-de-desarmar-a-bomba-fiscal.ghtml
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