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Os estertores do emprego com carteira assinada

Se o sistema de contratação clássico com CLT não é bom para o empregador, desestimula a formalização, e não é mais do interesse de crescente parte dos trabalhadores, por que continuar com ele?

Pedro Passos e Pedro Wongtschowski

Valor

Mais da metade da população brasileira em idade de trabalhar não fazia contribuição a sistemas previdenciários no final de 2022. Em 2024, de 176 milhões de brasileiros nesta fase, 66 milhões estavam fora da força de trabalho.

Em artigo na edição de outubro da Conjuntura Econômica, José Roberto Afonso, Paulo Vales e Geraldo Biasoto Jr afirmam: “O desemprego e a desocupação, a informalidade do trabalho e também o despreparo para lidar com o empreendedorismo ou trabalho independente, tiram a eficácia das políticas sociais brasileiras em termos de proteção previdenciária e mesmo social”. Respeitados especialistas no assunto, como José Pastore, que estuda o assunto há anos, tem posições semelhantes.

A informalidade é problema crônico do sistema de trabalho vigente no Brasil. Nos últimos 20 anos, o país passou por crises, recessões, pandemias e esparsos períodos de crescimento. Durante todo este tempo o número de pessoas trabalhando informalmente situou-se sempre em torno de 40% da força de trabalho. A informalidade decorre especialmente de três razões: empregos de má qualidade, baixa qualificação profissional e encargos sociais muito altos. Enquanto não encaminharmos soluções para os três problemas, a informalidade só tenderá a crescer. O que torna a solução ainda mais difícil é sabermos que hoje a informalidade se concentra nos trabalhadores de renda mais baixa.

Os brasileiros tinham um sonho, o emprego com carteira assinada. Este tempo está passando. As novas formas de trabalho, incluindo empregos temporários, avulsos, autônomos, trabalha rural, empregos intermitentes, por projeto ou para atender a plataformas digitais, alterou este quadro. Hoje os trabalhadores valorizam a independência, a ausência de chefe, hierarquia e subordinação, o empreendedorismo e o direito de trabalhar onde e quando quiserem, a despeito de valorizarem a proteção que a carteira assinada traz.

Estima-se que quase 4 milhões de brasileiros dedicam-se hoje aos chamados aplicativos, trabalhando ancorados em plataformas digitais. A falta de regularidade deste tipo de trabalho sequer permitiria que fossem associados aos mecanismos tradicionais de proteção laboral. Mas, como seres humanos, eles também adoecem, se acidentam, morrem ou ficam desocupados. E, nestas horas, falta-lhes a proteção que só um sistema previdenciário pode dar. Mas a situação é ainda pior, pois também a sociedade fica desprotegida já que os não amparados vão cair no colo da assistência social, braço de nosso sistema de seguridade social.

São múltiplos os sistemas de trabalho hoje usados no Brasil. Incluem o emprego em pessoa jurídica com carteira assinada, o emprego doméstico onde se presta serviços a pessoa física, e os regimes onde ocorre contribuição previdenciária individual, como para autônomos, empreendedores, profissionais liberais – todos sem vínculos empregatícios. Temos também os microempreendedores individuais (MEI), microempresas, empresas de pequeno porte, sociedade limitada unipessoal e muitas outras.

As contribuições previdenciárias são distintas, mesmo quando o rendimento do trabalho é o mesmo. Há muitos brasileiros ocupados que nada recolhem a título de contribuição previdenciária. Isso inclui não apenas os informais, mas também os donos dos próprios negócios, sem funcionários. Neste grupo estão os proprietários de 6,6 milhões das 9,4 milhões empresas brasileiras. Há também o caso dos microempreendedores individuais (MEI) que recolhem mensalmente R$ 70,60, independente do volume de seu faturamento; isso gera o direito à aposentadoria de um salário mínimo, o que na maior parte dos casos, é valor muito inferior à sua remuneração atual.

O custo de dar ao trabalhador o registro que leva à carteira assinada é muito alto. Um funcionário custa mais do dobro de sua remuneração nominal. Na dispensa de um empregado contratado pelo regime da CLT, a empresa tem que arcar com gastos que incluem aviso prévio proporcional, indenização de quarenta porcento do FGTS do empregado, férias vencidas ou a vencer e vários outros itens. Em decorrência a dispensa de um colaborador com um ano de trabalho custa cerca de 1,7 salários mensais, com três, 2,7 salários e com cinco anos de trabalho custa o equivalente a 3,7 salários. O alto custo de dispensa desincentiva a contratação formal e favorece a chamada “pejotização”, prática quase generalizada em certos setores da economia.

Ora, se o sistema de contratação clássico com CLT não é bom para o empregador, desestimula a formalização, e não é mais do interesse de crescente parte dos trabalhadores, por que continuar com ele?

O déficit da previdência brasileira, estimado em R$ 429 bilhões em 2023 é reflexo de um sistema fracassado. Pessoas que não contribuem recebem aposentadoria; há aqueles cujo benefício é igual ao seu salário da ativa, enquanto outros recebem uma pequena parcela do que contribuíram. O sistema é iníquo, mesmo aceitando que ele deve cumprir uma função social, favorecendo os trabalhadores de renda mais baixa.

O conjunto de instituições que regula o trabalho no Brasil, a começar pela Justiça do Trabalho, é uma jabuticaba recordista em processos, sem comparação mundial tanto pela atuação dos sindicatos de trabalhadores quanto dos sindicatos patronais.

A legislação trabalhista brasileira, inspirada na Carta del Lavoro, faz com que o Ministério do Trabalho imagine ser possível a criação de emprego e renda tendo como bússola a CLT getulista. A Justiça do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho são crescentemente reféns de ideólogos do sindicalismo que substituíram os intérpretes da lei. O nosso arcabouço institucional atual é incapaz de lidar com as novas demandas das relações de trabalho hoje prevalentes. É dos políticos a responsabilidade de entender esta nova realidade e promover as mudanças do que está com a validade vencida. Eles parecem não ter ouvidos para o que a sociedade não se cansa de manifestar, inclusive através do voto.

É tempo de repensarmos um sistema cujo tempo passou, que já não atende aos brasileiros, que é atuarialmente inviável, complexo e, mais importante, profundamente injusto.

Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/os-estertores-do-emprego-com-carteira-assinada.ghtml

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Pedro Passos