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Otimismo e medo

Folha

“Não é o fim do mundo” é o título de um texto recente de Helio Schwartsman, tratando do livro homônimo da escocesa Hannah Ritchie. A coluna despertou minha curiosidade, apesar da desconfiança inicial provocada por sua primeira frase: “Quando Deus criou a humanidade, dividiu as pessoas em otimistas e pessimistas e condenou-as a nunca se entenderem. Hannah Ritchie…definitivamente pertence à primeira tribo”. Explico: tenho sempre uma certa reserva em relação às classificações “otimista” e “pessimista”. Especialmente no que se refere à questão da crise climática, por mais distantes que se encontrem no espectro ideológico, otimistas e pessimistas acabam se dando as mãos na inação. Uns não agem por julgarem desnecessário e outros por acreditarem ser inútil.

Fiz bem em vencer meu preconceito.

A tese de Ritchie é que sua geração (ela nasceu em 1993) é a primeira a ter a oportunidade de deixar o meio ambiente em melhor estado do que o recebeu. Cientista de dados e pesquisadora do renomado site Our World in Data, da Universidade de Oxford, ela sustenta sua visão com objetividade, a partir de dados científicos apresentados de forma clara.

O livro está organizado em oito capítulos, sendo o primeiro sobre sustentabilidade, e os sete seguintes, sobre grandes problemas ambientais de nosso tempo: poluição do ar, aquecimento global, desmatamento, alimento, perda de biodiversidade, plásticos nos oceanos e pesca predatória. Para cada um desses temas, busca responder a três questões básicas: onde estamos, como chegamos até aqui e o que devemos fazer à frente.

Adotando o distanciamento necessário a uma visão de longo prazo, a autora procura mostrar que em todas essas frentes tem havido progresso e são conhecidas as medidas necessárias para a superação dos problemas. “Se dermos vários passos para trás, poderemos enxergar algo realmente radical, transformador e revitalizante: a humanidade está em uma posição verdadeiramente única para construir um mundo sustentável”.

Somos apresentados a evidências da capacidade humana de superar problemas ambientais graves, como a chuva ácida e o buraco da camada de ozônio, e a dados que apontam a tendência de queda na pegada de carbono per capita. Mas esses fatos não induzem a autora a uma postura complacente em relação à necessidade de agir decididamente no enfrentamento dos problemas. Cada capítulo traz uma série de recomendações de ações necessárias para atingir a sustentabilidade, com justificativas fundamentadas.

Ao mesmo tempo, e sempre através de dados concretos, Ritchie desconstrói crenças bastante disseminadas, como as vantagens ambientais da agricultura orgânica (requer muito mais área), a preferência a ser dada a fornecedores locais (as emissões de transporte são normalmente pouco relevantes na pegada de carbono dos alimentos) ou mesmo a importância atribuída aos canudos plásticos (muito menos importantes que as redes de pesca abandonadas nos oceanos).

Promover a substituição acelerada dos combustíveis fósseis como fonte de energia é uma recomendação que se repete ao longo da leitura, sempre de forma enfática. “Nós precisamos apenas colocar um preço no (nas emissões de) carbono e assegurar que os ricos paguem a maior parte”, afirma a autora em uma das poucas passagens com cunho político, como se isso fosse fácil.

No geral, Ritchie evita deliberadamente tratar dos aspectos conflituosos do tema, centrando a discussão em questões técnicas. Ela não os ignora completamente, deixando claro que “é preciso mudar os incentivos políticos e econômicos” sem, contudo, se aprofundar no assunto. Nesse sentido, sua argumentação lembra muito a postura de Bill Gates no episódio sobre crise climática de sua série “What’s Next”, na Netflix: toda a discussão centrada na tecnologia, ignorando os obstáculos políticos e econômicos que limitam a implementação de soluções tecnológicas em larga escala. A postura tecnocêntrica de ambos lembra o chiste “para quem só tem martelo, todo problema é prego”. Não surpreendentemente, Gates escreve uma resenha muito elogiosa de “Not The End of The World”.

Seria um erro, porém, acreditar que a visão “otimista” que resulta da omissão dos aspectos políticos mais complexos seja uma forma de aliviar as expectativas depositadas por Ritchie sobre a sua geração. Se essa abordagem permite tratar o tema sob uma luz mais favorável, ela também coloca sobre aqueles incumbidos da tarefa a exigência de resultados superiores.

Ao mostrar claramente que dispomos dos meios tecnológicos necessários para fazer frente ao desafio climático e que já invertemos a tendência de deterioração em várias das frentes relevantes, Ritchie propõe implicitamente substituir o medo pelo otimismo como elemento motivador da ação. Associo essa postura à reflexão do filósofo André Comte-Sponville em seu belo discurso “A Felicidade, Desesperadamente”. Para ele, a felicidade não pode apoiar-se em esperanças favoráveis, pois sobre cada uma dessas expectativas pesa sempre a sombra do temor da sua não ocorrência. A felicidade, assim, só pode ser sustentada pelo sentimento de potência que deriva da confiança de sermos capazes de enfrentar os desafios que a realidade nos reserva. É esse sentimento de potência que “Not The End of The World” procura transmitir a seus leitores.

Ritchie elenca três formas como podemos contribuir individualmente: 1) ter atuação política e eleger líderes que promovam a sustentabilidade; 2) dar preferência a produtos sustentáveis em nossos hábitos de consumo, mesmo que seu preço ainda seja mais elevado e 3) alinhar-se ao campo da sustentabilidade e procurar não combater quem está no mesmo lado em razão de diferenças de opinião marginais.

resultado da eleição americana —perfeito oposto da primeira recomendação acima— expõe de forma brutal o risco de apostar todas as fichas na tecnologia. A vitória de um candidato negacionista apoiado ostensivamente pelo setor de óleo e gás faz retroceder várias casas o combate ao aquecimento global, sugerindo que o otimismo não pode prescindir do medo como aliado e alerta vital motivador da urgência nas ações.

Como conclui Ritchie, “Um futuro sustentável não é uma garantia —se o quisermos, precisamos construí-lo juntos”. Agora ficou mais difícil.

Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2024/11/otimismo-e-medo.shtml

As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.


Sobre o autor

Candido Bracher