Se esta medida for aprovada, estaremos abrindo mão de recursos públicos que poderiam ser usados na saúde para fazer da transferência de renda para os mais ricos da nossa sociedade
Valor
O governo divulgou nesta semana seu novo programa de corte de gastos, para tentar reverter as expectativas do mercado frente ao crescimento contínuo das despesas públicas. Além das medidas para cortar gastos, o governo anunciou também a ampliação da isenção de imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil por mês e um aumento de impostos para os mais ricos. Será que estas mudanças fazem sentido?
É necessário cortar gastos públicos para adequá-los ao arcabouço fiscal. Muitas despesas do governo têm mecanismos próprios de indexação que as tornam incompatíveis com o arcabouço, pressionando os gastos obrigatórios. Muitos gastos públicos, como as aposentadorias, o abono salarial e o Benefício de Prestação Continuada, por exemplo, são indexados ao salário mínimo, que em 2025 provavelmente cresceria acima do aumento de despesas previsto pelo arcabouço.
A mudança na regra de reajuste do salário mínimo, vinculando-a às regras do arcabouço, é bem-vinda. O salário-mínimo cresceu 190% em termos reais nos últimos 30 anos, mais do que recuperando a grande queda que ocorreu entre 1976 e 1994. Atualmente, 125 milhões de brasileiros já têm sua renda domiciliar per capita diretamente influenciada pelo salário mínimo. Além disto, o mercado de trabalho está bastante aquecido, tendo o desemprego atingido seu menor nível desde 2012, o que começa a ter reflexos na inflação. Isto, por sua vez, está provocando um novo ciclo de aumento da taxa de juros, a partir de níveis já elevados.
Alta de impostos para os mais ricos faz sentido, mas não deveria ser acompanhada da isenção para a “classe média”
Estes fatos, além da fragilidade fiscal, indicam que esse é o momento de sermos mais comedidos com os aumentos do salário mínimo. Além disto, as mudanças nas regras do Fundeb, abono salarial, BPC, supersalários e na aposentadoria dos militares também estão na direção correta. É muito importante combater as fraudes nestes programas também. Já com relação às mudanças anunciadas no imposto de renda, a ampliação da isenção fiscal para quem ganha até R$ 5 mil não é uma boa medida. Quem ganha entre R$ 2.824 (isenção atual, levando em conta o desconto simplificado) e R$ 5 mil por mês não é pobre no Brasil.
Podemos dividir a população brasileira com algum tipo de renda em três grupos. O primeiro grupo seria composto pelos que ganham até R$ 2.824, que já são isentos pela regra atual. O segundo grupo são os que ficarão isentos com a nova regra, A renda familiar per capita média no Brasil, segundo dados da Pnad-Contínua do IBGE de 2023, era de R$ 1.892, ou seja, uma família de quatro pessoas tinha uma renda de R$ 7.568. Os 103 milhões de brasileiros com renda que são isentos de pagar imposto de renda pela regra atual tinham uma renda média de R$ 1.333. Já os 12 milhões de brasileiros que se tornarão isentos com a nova política tinham em 2023 uma renda per capita de R$ 2.766, equivalente a R$ 11 mil para família de quatro pessoas, bem acima da média nacional. Somente 26% das pessoas com rendimento tinham uma renda per capita maior do que a deles no Brasil.
Estes cidadãos somente podem ser considerados de classe média pelos critérios usados informalmente na sociedade brasileira e na mídia, mas se comparados com os demais brasileiros podem ser considerados privilegiados. Usando uma linha de pobreza de meio salário mínimo, não há nenhum brasileiro pobre nesta faixa de renda. Ou seja, não faz sentido esta renúncia fiscal num momento de dificuldade com as finanças públicas e de mercado de trabalho aquecido. Já os mais ricos (segundo este critério) têm renda per capita média de R$ 7.752.
Além disto, os dados da Receita Federal mostram que os brasileiros que serão beneficiados se a ampliação da isenção for aprovada pagam atualmente uma alíquota efetiva em torno de 3% da sua renda total, ou seja, receberiam um aumento de renda nesta magnitude se tivessem isenção de pagamento. Isto ocorre porque muitos deles já usam as despesas de saúde, educação, doações e planos de aposentadoria para abater o imposto devido. Ou seja, seu aumento efetivo de renda nem seria tão grande.
Mas, como os 10 milhões de brasileiros mais ricos também serão beneficiados com a medida, porque passarão a ter isenção fiscal na parcela da sua renda abaixo de R$ 5 mil, o valor total da renúncia fiscal será elevado, chegando a R$ 40 bilhões, segundo cálculos divulgados na imprensa. Ou seja, se esta medida for aprovada, estaremos abrindo mão de recursos públicos que poderiam ser usados na saúde para fazer transferência de renda para os mais ricos da nossa sociedade.
pois ganham entre R$ 2.824 e R$ 5 mil. Em seguida, temos os mais ricos, que somente terão isenção de imposto sobre a parcela da sua renda até R$ 5 mil. Para estes dois últimos grupos, vamos incluir nos cálculos somente os que contribuem para a previdência, pois são provavelmente os que também declaram IR.
Para contrabalançar esta medida, o governo também anunciou uma proposta para aumentar o imposto dos mais ricos, que faz todo o sentido. A ideia seria aumentar os impostos dos cerca de 100 mil brasileiros mais ricos com renda total declarada acima de R$ 600 mil anuais, para que eles tenham uma alíquota efetiva mínima de 10%. Ou seja, quem já paga uma alíquota nesta faixa, por ter grande parte de sua renda oriunda do salário, por exemplo, não seria afetado. Mas, quem recebe a maior parte da sua renda por meio de lucros e dividendos, teria que pagar imposto até que sua alíquota final alcance 10% da sua renda total.
Esta medida é importante do ponto de vista de justiça tributária, pois estudos recentes mostram que os brasileiros muito ricos têm uma alíquota efetiva pequena, em torno de 13% da renda total, mesmo depois de levarmos em conta os impostos pagos por suas empresas. Esta alíquota é muito baixa para padrões internacionais.
Em suma, as medidas econômicas anunciadas esta semana na direção de cortar gastos públicos fazem sentido, pois as projeções indicam que a situação fiscal poderá sair do controle nos próximos anos. Mas talvez sejam insuficientes para resolver este problema. Além disto, a ampliação da isenção de impostos não faz sentido econômico nem em termos de justiça tributária. O aumento de impostos para os mais ricos faz todo o sentido, mas não deveria ter sido acompanhado da isenção para a “classe média”.
Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/mudancas-no-imposto-de-renda.ghtml
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