FGV IBRE
Em entrevista recente ao O Estado de S. Paulo (link aqui, acesso restrito a assinantes do jornal), o sr. afirmou que o atual pacote foi a última janela do governo para sinalizar compromisso com o ajuste fiscal. Diante da urgência em se reverter as condições financeiras, era possível apostar em um grupo mais amplo de medidas para garantir a economia necessária para o cumprimento do arcabouço em 2025?
Acho que há uma sucessão de erros de política fiscal desde o começo do governo. Erros do ponto de vista técnico que fazem sentido para o projeto político do governo, mas que, no final, vão bater na dívida pública. Quando houve a posse deste governo e teve a PEC da Transição, eu e outros colegas alertamos: “Isso vai estourar, é um peso muito grande”, enquanto muita gente dizia: “Está correto, é preciso recompor a despesa”. Logo veio o novo arcabouço, e publiquei uma nota com coautores dizendo que este era insuficiente e inconsistente, não só por uma inconsistência interna, por conta da indexação de despesas à receita, como por sua inconsistência com outras medidas do governo, como a do salário mínimo. Mais uma vez, eu e meus colegas fomos chamados de pessimistas, de profetas do caos, afirmando que estávamos projetando uma despesa muito alta, com números superestimados. Pois bem, a despesa acabou sendo maior do que a que projetamos.
Não bastasse o arcabouço ser insuficiente, o governo partiu do princípio de que valeria todo tipo de manobra para “cumpri-lo”, encontrando formas de gastar sem aparecer nas estatísticas fiscais, ou mudando a meta de primário, depois passando a mirar no limite inferior da meta, colocando despesas fora do limite.
Trata-se de uma sequência de medidas expansionistas que o nosso quadro fiscal não suporta. Assim, quanto ao questionamento se, dadas as circunstâncias, tinha como fazer melhor, o problema é que “as circunstâncias” foram em parte criadas por erros que têm se acumulado, uma série de medidas que não cabem no nosso quadro fiscal.
Além disso, dentro do próprio anúncio houve medida na direção contrária, do aumento da tabela de isenção do Imposto de Renda, com dúvidas sobre a possível viabilidade de compensação. Ou seja, passamos dois meses discutindo o que poderia ser feito de política fiscal, sob uma crise de credibilidade enorme, e o que se apresentou foi isso. Para mim, o governo revelou a sua preferência de política fiscal. Parece que agora caiu a ficha sobre o que a gente vinha falando lá atrás, de que o arcabouço fiscal é irrelevante, porque não é suficiente, e está se tornando menos suficiente ainda.
Qual sua estimativa sobre o impacto que o pacote deveria gerar para garantir sustentabilidade do arcabouço, e quais medidas estruturantes deveria compô-lo?
Temos que sair de um déficit que está na faixa de 0,6% do PIB para um superávit de, pelo menos, 2% do PIB. Então, temos que fazer um ajuste na casa de 2,6 pontos percentuais do PIB, que representa algo como R$ 300 bilhões. Claro que é impossível fazer isso de uma hora para outra, mas é necessário gerar mudanças paramétricas no gasto público, sinalizando uma mudança de trajetória desse gasto ao longo do tempo.
Por exemplo, se você indexasse o salário mínimo simplesmente à inflação, como era no governo anterior, em 2030 a despesa obrigatória estaria R$ 200 bilhões mais baixa, só pela diferença de indexador. Com a regra que o governo propôs, a redução estimada é de R$ 45 bilhões. Então, a fragilidade do ajuste está na diferença entre R$ 45 bi e R$ 200 bi.
Ninguém está falando que se tem que pegar um sujeito que está na UTI e botá-lo pra correr uma maratona no dia seguinte. Mas se ao longo do tempo as regras forem mudadas para regras consistentes, é possível recuperar esse paciente gradualmente. Para isso, duas coisas seriam centrais: uma regra de correção do salário mínimo mais conservadora, que eu acho que teria que ser pela inflação, e a desindexação de saúde e educação da receita. Note que a desindexação do FCDF que estão propondo, e é uma medida correta, vai nessa mesma direção..
Considera que as medidas anunciadas foram pouco intensas, ou que era possível incluir outras já maduras agora?
Quantos às medidas que foram propostas, acho inadequada a longa transição do abono salarial para se chegar a um salário mínimo e meio. O abono deveria acabar e ponto, pois é uma política que já não faz o menor sentido. No caso das emendas parlamentares, a lei aprovada pelo Congresso é ruim. Ela praticamente garante espaço todo ano para as emendas não obrigatórias já corrigidas pela inflação e manteve um valor muito alto das emendas obrigatórias. Ainda que venham a ser corrigidas pela regra do arcabouço, não mais pela receita, ainda vão ter crescimento real todo ano. Estudo de minha coautoria mostra que não existe nada próximo ao nosso volume de emendas nenhum lugar do mundo, bem como a capacidade de captura do orçamento pelo Legislativo como acontece no Brasil.
Outra coisa é o Fundeb. O atual Fundeb, aprovado em 2020, foi muito mal negociado na ocasião, diante da pressão muito grande da bancada de educação, que resultou em um aumento enorme. Seria preciso fomentar uma discussão para reduzi-lo. Ainda há o BPC, que teve várias mudanças, menos uma coisa central que precisa mudar de fato, que é a idade mínima. É preciso fixar uma idade maior que a idade mínima da aposentadoria contributiva, para não desestimular a contribuição da aposentadoria de um salário mínimo. No caso do Bolsa Família, também mudaram várias coisas, mas o essencial a era acabar com o benefício mínimo de R$ 600 por família. É esse benefício mínimo que estimula as pessoas a fingirem que são uma família unipessoal. Isso foi criado no governo Bolsonaro, Lula poderia ter revogado, mas se recusou. Agora, ao invés de se acabar com o incentivo, vai-se mandar fiscal para todo lado para identificar irregularidades, gerando um custo gerencial. Criou-se uma regra de limite máximo por município de família unipessoal. Era melhor acabar com o mínimo de R$ 600 por família, o que não significaria necessariamente reduzir a despesa do Bolsa Família, mas estabelecer outro critério, por exemplo, ampliando o valor para quem tem mais filho, focalizando melhor a despesa.
Também destacaria os fundos da DRU e a desvinculação dos fundos, previstos no projeto. Seria fundamental vinculá-los à quitação da dívida pública. Se esse dinheiro for desvinculado e for usado para fazer despesa parafiscal, como tem sido feito até hoje no governo, como emprega-lo no BNDES para expansão de crédito subsidiado, isso vai piorar a situação, não a melhorar.
Quanto aos temas que poderiam ter entrado, um deles é seguro-desemprego. Seria importante encontrar uma forma de financiar parte dele com os saldos do FGTS ou com as multas rescisórias. Outra coisa que precisa entrar em algum momento é a questão do Simples e do MEI, que têm limites de faturamento muito altos, promovendo um benefício tributário muito grande.
Acha que o Congresso aceitaria um pacote mais arrojado?
Parece-me que o governo quis mandar um pacote achando que o Congresso iria promover os apertos, chamar para si o custo. Só que as declarações que vemos nos jornais deixa claro que o Congresso não vai assumir isso. Não vai colocar no seu colo o custo político de ajudar o Lula arrumar as contas para se reeleger em 2026.
Lembrei-me agora da Reforma da Previdência, quando os governadores e prefeitos foram a Brasília pressionar para serem incluídos e os parlamentares negaram, indicando que já estavam pagando o custo político da reforma federal.
Diante de sua avaliação de que o governo perdeu a oportunidade de mostrar compromisso com um ajuste fiscal de fato, e ao Congresso não interessa arcar com essa responsabilidade, o que esperar até 2026?
Há um jogo, em que o Executivo vive um conflito interno muito grande. O governo perdeu a eleição municipal, e está com medo da próxima. O efeito das emendas parlamentares e do financiamento público de campanha parece ter sido mais potente para os partidos do Centrão do que para os dois extremos, da direita e da esquerda. Por isso, o governo está dividido entre fazer um ajuste fiscal para chegar bem em 2026 e correr o risco da perda de popularidade. Assim, quer jogar o ajuste no colo do Legislativo, onde por sua vez os partidos vivem o dilema entre não serem acusados de deixar a coisa desandar, aguando o pacote demais, e puxar para o seu colo o custo de fazer um pacote que efetivamente dê resultado. Acho que cada um vai fazer o mínimo possível para não queimar a sua imagem, o que significa algo que é muito inferior à necessidade do país.
O tema da Carta do IBRE de dezembro é disseminação do risco fiscal. Um dos elementos citados é o aumento da descentralização de recursos aos entes subnacionais – que em outras épocas colaboraram para a recomposição do superávit. Concorda que esse tema, se não endereçado, é um complicador relevante para o equilíbrio das contas públicas?
Sim. As relações federativas no Brasil entraram em um processo de desequilíbrio nos últimos anos. Mais precisamente, desde 2014, quando pela primeira vez depois da LRF foi autorizada uma renegociação de dívida de estados e municípios, que estava proibida. Isso decorre de um poder muito grande que os estados e municípios ganharam dentro da federação por vários mecanismos. O principal deles é uma alavancagem muito grande sobre deputados e senadores. Afinal, todo deputado ou senador quer levar benefício para casa. Então, qualquer coisa que você vote para dar socorro a estados e município no Congresso passa rapidamente. Esses entes também conseguiram alavancagem muito grande junto ao STF. Estudos acadêmicos mostram que, quando estados e municípios processam a União em questões fiscais, no STF eles ganham 98% das vezes, com o argumento de que estado e município são mais fracos que a União. Portanto, se o estado entra no STF dizendo que não quer pagar uma contragarantia de uma dívida que ele não pagou, se não quer pagar a dívida para a União, o STF dá liminar e decisão a favor dos estados. Isso gera um ambiente de indisciplina fiscal, porque quando a coisa apertar, ele vai para cima do Congresso, do STF e consegue repassar o custo.
Isso, de certa forma, também acontece pela via das corporações, em especial da área de educação. Veja o que aconteceu nos últimos anos: seguidas renegociações de dívida, com o aumento brutal do Fundeb; a Lei Aldir Blanc, que também é transferência para estados e municípios para financiar a cultura; as transferências durante a pandemia, que se mostraram muito maiores do que os gastos. Teve aumento do tamanho do FPM, das emendas parlamentares, despesas como com o piso salarial da enfermagem que a União tem que cobrir, e agora temos mais uma proposta de renegociação da dívida dos estados. É de fato uma relação desequilibrada, que tem tornado o orçamento ainda mais rígido, aumentando a taxa de crescimento da despesa.
Link da publicação: https://ibre.fgv.br/blog-da-conjuntura-economica/artigos/o-congresso-nao-chamara-para-si-o-custo-do-ajuste-fiscal-afirma
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