Para pesquisador, medida traz benefícios ao desenvolvimento infantil e, futuramente, à produtividade
Valor
Uma redução menor da jornada de trabalho do que a proposta inicial da deputada Erika Hilton (Psol-SP) pode ser mais fácil de ser assimilada pela economia e ainda trazer benefícios ao desenvolvimento infantil e, consequentemente, à produtividade futura do país. Esta é a avaliação de Naercio Menezes Filho, professor titular da Cátedra Ruth Cardoso no Insper, professor associado da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e colunista do Valor.
Hilton propõe reduzir a jornada de trabalho brasileira das atuais 44 horas semanais para 36 horas, acabando com a escala de 6 dias de trabalho para 1 de descanso e instituindo a escala 4×3.
“Minha posição é que isso pode ser feito, de uma maneira escalonada, com uma redução menor, não tão drástica e que seja debatido e discutido. Mas acho importante mostrar também as evidências que temos. E uma das únicas evidências que a gente tem para o Brasil é um estudo feito lá atrás e que não identificou efeitos negativos”, afirma Naercio.
Ele se refere a um artigo publicado em 2003, em que Naercio e os colegas da PUC-Rio Gustavo Gonzaga e José Márcio Camargo analisaram os impactos, no mercado de trabalho, da Constituição de 1988. O novo texto determinou a diminuição da jornada de 48 para 44 horas semanais, sem redução da remuneração, além de aumentar o custo da hora extra.
O estudo dos economistas acompanhou os mesmos trabalhadores antes (1986 e 1987), no início da mudança (1988 e 1989) e um pouco depois (1989 e 1990), a partir da Pesquisa Mensal de Emprego (PME), realizada pelo IBGE e antecessora da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua).
Foram analisados empregados que trabalhavam de 45 a 48 horas, ou seja, que foram afetados pela redução da jornada (o “grupo de tratamento” da pesquisa), e aqueles que trabalhavam de 40 a 44 horas e que não foram atingidos pela mudança (o “grupo de controle”).
“O que a gente encontrou foi que não aumentou a probabilidade de o trabalhador ficar desempregado, não aumentou a probabilidade de o trabalhador que teve a jornada reduzida sair da força de trabalho e aumentou o salário horário, ou seja, beneficiou esse trabalhador”, afirma Naercio. “Na época, dizia-se a mesma coisa de agora, que ia causar desemprego, que os trabalhadores seriam prejudicados. A gente também achava que ia encontrar isso, mas não aconteceu.”
A redução da jornada é uma proposta histórica das centrais sindicais, sempre como uma solução para a geração de empregos. A ideia, conhecida como “partilha do trabalho” (ou “work-sharing”), é que a redução de jornada permitiria que o mesmo trabalho fosse repartido por mais trabalhadores.
O quadro atual do Brasil, no entanto, está distante de um problema de escassez de vagas. O país tem registrado taxas de desemprego historicamente baixas e, segundo alguns economistas, pode fechar o ano com uma desocupação inferior a 6%. “Isso é diferente”, reconhece Naercio.
O aquecimento atual do mercado de trabalho, porém, pode indicar um momento até mais favorável para discussões sobre redução de jornada, observa Naercio, já que o cenário pode ajudar a minimizar, por exemplo, um eventual aumento da “rotatividade” – isto é, empregadores demitirem os funcionários que passaram a trabalhar menos pelo mesmo salário para contratar substitutos com pagamentos mais baixos.
“Há escassez de trabalhadores disponíveis no mercado hoje. Quando a economia está bombando, aumenta muito o poder de barganha do trabalhador, em relação às empresas. Elas estão precisando contratar gente, não vão querer demitir o trabalhador para arriscar contratar outro. Às vezes, as empresas absorvem isso, especialmente em momento de economia aquecida, e os trabalhadores são beneficiados com as mudanças”, afirma Naercio. “Não estou dizendo que isso vai acontecer, mas é possível que aconteça.”
É difícil cravar o que aconteceria se a reforma fosse implementada agora porque outras condições também são diferentes daquelas de 1988, pondera Naercio.
Ele lembra que a época da mudança constitucional foi marcada, por exemplo, pela hiperinflação. “Em 1989, a inflação chegou a 80% por mês. Se você mantivesse o salário constante, na verdade, o salário real caia”, diz o economista.
Da forma como está sendo proposta, a reforma deve levar a um aumento do custo de trabalho para as empresas, admite o professor. “É uma redução maior da jornada do que foi feito em 1988. Pode ser que empresas maiores, que empregam bastante gente, tenham condições de absorver esse aumento de custo. Mas eu acho, particularmente, que pode ser uma mudança muito radical”, diz.
Para Naercio, uma “solução intermediária” – por exemplo, de redução para 40 horas semanais (ou oito horas por dia), em uma jornada 5×2 – “seria mais fácil de ser absorvida economicamente”, afirma. “Não vai acabar o mundo se reduzir quatro horas semanais e ficar com cinco dias”, afirma.
Permitir que os trabalhadores tenham mais tempo livre pode gerar ainda um efeito benéfico para o desenvolvimento infantil, destaca Naercio, que é diretor do Centro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância (CPAPI) do Insper, membro do Núcleo Ciência pela Infância (NCPI) e tem se dedicado ao tema nos últimos anos.
“Para as crianças terem desenvolvimento pleno, elas precisam interagir com os pais”, afirma. A primeira infância, diz Naercio, é quando o cérebro da criança se desenvolve mais rápido, junto com todas as suas habilidades cognitivas, de inteligência, raciocínio e emocionais. “Neurocientistas, economistas, educadores, médicos, todos estão verificando através de estudos que os primeiros seis anos de vida são fundamentais, porque as sinapses, que são as ligações entre os neurônios, se dão de maneira muito rápida. A criança precisa ser estimulada nesse período, precisa de gente que explique as coisas, converse, leia para ela.”
Por falta de tempo, disponibilidade ou informação, pais de famílias mais pobres são os que menos interagem com seus filhos, segundo Naercio. Ele cita o caso dos trabalhadores domésticos. Mais da metade (quase 55%) dos trabalhadores domésticos com carteira assinada que trabalham mais de 36 horas semanais tem jornada de 44 horas semanais ou mais, aponta Naercio.
“Eu sempre penso nas empregadas domésticas, que trabalham seis dias por semana, saem de casa às 5h e voltam às 21h e ainda, quando chegam, vão fazer as tarefas do lar, cozinhar. Elas não têm o mínimo tempo. São pessoas pobres cujos filhos não estão tendo um cuidado apropriado. Não precisa ser economista para saber que a redução de jornada sem perda de emprego e de formalidade seria boa para essas famílias”, afirma.
Um resultado de mais essa desigualdade é, por exemplo, que o vocabulário de uma criança de família mais rica é bem maior do que o de uma criança de uma família pobre, diz Naercio. “Aí, quando essa criança, que passou por um ‘período de estresse’ grande, chega à escola, ela tem mais dificuldade de aprender. Ela repete de ano, sai da escola sem completar o ensino médio, vira um ‘nem-nem’ [jovem que não estuda nem trabalha] ou não consegue emprego formal. Vira um ciclo vicioso”, afirma Naercio.
Os reflexos negativos desse ciclo vão aparecer na produtividade do trabalho do país à frente, alerta o pesquisador. “Muitas pessoas falam da questão da produtividade, mas ela está muito ligada ao capital humano, e o capital humano depende do que acontece na primeira infância. Se você dá mais tempo para os país conviverem com seus filhos, especialmente onde não há vagas em creches… muitos estudos mostram que isso vai aumentar a produtividade dos países no futuro. Não estou dizendo que só reduzindo a jornada vai resolver os problemas, mas a pessoa vai ter um dia a mais para conviver com as crianças e isso tem de entrar na conta”, afirma Naercio.
Segundo ele, cerca de 70% dos trabalhadores na Pnad Contínua têm jornada entre 36 e 44 horas. Em tese, diz, muita gente poderia sentir a mudança. “As condições, realmente, são diferentes de 1988, então, é difícil saber o que vai acontecer. Mas ninguém sabe, são opiniões, previsões. O que a gente sabe é que, quando foi feita essa redução, não houve impacto negativo, e é um fato que eu acho que tem de ser levado em consideração.”
Para o pesquisador, uma redução de jornada no Brasil parece “inexorável” a longo prazo. “Nos países escandinavos, as pessoas trabalham cinco dias por semana, deu 17h, vai todo mundo para casa. Lógico que são países ricos e que têm condições de todo mundo ter uma jornada limitada. Mas é uma discussão bem-vinda aqui. Tenho bastante confiança que daqui dez, 20 anos, essa jornada [no Brasil] vai se reduzir de qualquer forma”, afirma. “A questão é: precisa fazer através de uma lei tão radical agora? Eu acho que é preciso ter cautela”, pondera.
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