Conhecer um pouco da economia de Marrocos e Turquia, países nos extremos do Mediterrâneo, pode dar algumas perspectivas enriquecedoras em um mundo de grandes mudanças
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Homero não especifica onde Ulisses encontrou Circe e Calypso. Mas há quem as ponha em ilhas nos extremos do mar Mediterrâneo, a primeira para as bandas da Turquia, a outra talvez nos lados do Marrocos, ainda que os romanos tenham a tendência de situarem-nas perto da península itálica. Independente da geografia, e apesar do seu interesse inabalável por Ítaca, entende-se que os encantos dali serviram como bálsamo, pelo menos temporário, para aquele navegante.
Conhecer um pouco da economia dos países nos extremos do Mediterrâneo pode, de fato, dar algumas perspectivas enriquecedoras em um mundo de grandes mudanças. Ambos têm conseguido crescer com alguma estabilidade, apesar do Marrocos enfrentar uma crise climática e da Turquia ter passado por uma aventura com a política monetária que torna a estimativa do desempenho das variáveis reais no país mais incerta.
Mesmo com vários percalços, incluindo a inflação de dois dígitos dos últimos anos, a renda per capita na Turquia quase dobrou em termos reais neste século, crescendo mais que no Brasil (+43%), Argentina (+15%), África do Sul (+5%), México (-2%), e no próprio Marrocos (+60%). Ela ficou a par com o crescimento na Indonésia e Filipinas, mas bem abaixo daquele na Índia, Vietnã e Bangladesh, cuja renda também ajustada à paridade de poder de compra triplicou no período.
No que tange à situação fiscal, os dois países têm enfrentado déficits primários do governo central da ordem de 1,5%-2,5% do PIB, próximos ao que tínhamos no Brasil em 2017-19, mas bem maior do que o déficit que temos agora (0,5% do PIB).
Uma importante parte da vitalidade econômica de Turquia e Marrocos está ligada ao comércio exterior. As exportações de bens e serviços, incluindo o turismo, correspondem a mais de 30% do PIB do primeiro país e quase 45% do segundo. As remessas de cidadãos no exterior (8% do PIB) são importantes para o Marrocos, mas não para a Turquia. A indústria corresponde a perto de 20% do PIB nos dois países, proporção próxima à do Brasil quando se conta a indústria extrativa e maior quando se considera apenas a indústria de transformação, que corresponde a menos de 15% do PIB brasileiro.
A integração econômica com a Europa é relevante para ambos países, com 40% das exportações de bens da Turquia e quase 60% no caso do Marrocos indo naquela direção. Essa integração vale ainda mais para as indústrias como a aeronáutica, em que os dois países têm feito progressos notáveis.
A indústria aeronáutica gera perto de US$ 7 bilhões por ano para a Turquia, empregando 40 mil pessoas. Ela emprega 10 mil no Marrocos, gerando US$ 1-2 bilhões em atividades focadas na produção e montagem de componentes e sistemas para as grandes indústrias internacionais. Pode-se dizer que o setor na Turquia corresponde a perto da metade daquele no Brasil, ainda que empregue quase o mesmo número de pessoas. Ele tem sido favorecido pela demanda por produtos de defesa na região, refletido no sucesso do país na produção de drones e outros equipamentos militares nos anos recentes, além das vantagens indiretas do país ter se tornado um hub de aviação civil transcontinental (80 milhões de passageiros passando por Istambul, com a linha aérea nacional transportando 60% passageiros mais do que, por exemplo, a empresa de Dubai).
No Brasil, a Embraer, cujo preço da ação dobrou em 2024, desenvolve e produz aviões, estando centrada em um segmento em que ela prevê uma demanda mundial de mais de 10 mil unidades nos próximos vinte anos, com crescimento da frota de 4-5% ao ano. Além disso, a empresa tem investido em novas áreas, sendo pioneira no uso de combustível de aviação sustentável, que será chave para o setor nos próximos 20 anos, com reflexos positivos na economia brasileira.
Parceiros do Brasil, Marrocos e Turquia ilustram caminhos para o crescimento e enfrentamento do clima
O progresso de ambos os países tem sido prejudicado, para além dos desafios fiscais, pela mudança climática. O litoral do Marrocos tem sido erodido pelo mar e a seca persistente. A Turquia também viu lagos desaparecerem e as condições para agricultura piorarem. Por conta dos desafios hídricos, o Marrocos é um dos países a usar a estrutura para apoio à resiliência e sustentabilidade do FMI (Resilience and Sustainability Facility – RSF). Essa é, talvez, uma das inovações mais importantes nas finanças climáticas e para o desenvolvimento dos últimos anos.
A RSF proporciona empréstimos de 20 anos, com 10 anos de carência do principal e taxas concessionais no caso de países de menor renda. Ela se tornou possível com a destinação por alguns países mais ricos de parte dos aproximadamente $ 600 bilhões em SDRs (moeda do FMI) criados durante a pandemia para um fundo especial voltado a apoiar o enfrentamento do clima. Inicialmente pensado para pequenas economias, ele já mostra o potencial de se tornar um instrumento importante para facilitar transições, notadamente a redução da dependência do carvão, hoje a maior fonte de emissões de CO2 no mundo e cuja cadeia de valor é muito significativa em países como África do Sul e Indonésia, afora a China.
O uso de SDRs em grande escala corresponderia a emitir moeda, mas pode não ser inflacionário, na medida em que auxiliar a diminuir os impactos negativos da mudança climática na oferta global. Os SDRs podem vir a ser uma das ferramentas de maior impacto no financiamento da transição climática das economias, junto com a criação de um mercado global de créditos de carbono e a adoção dos padrões de contabilidade sustentável IFRS 1-2.
Essa adoção será obrigatória no Brasil a partir de 2026 e, se feita a nível mundial, estimulará fluxos de capital para países mais aptos a ofertar energia sustentável barata. A segurança hídrica do Marrocos, por exemplo, depende tanto da precificação adequada do uso da água quanto da energia solar barata para desalinizar a água do mar.
Finalmente, além de ilustrarem caminhos para o crescimento e enfrentamento do clima, os dois países são parceiros do Brasil (o fosfato do Marrocos está na nossa agricultura) e a boa saúde econômica deles é chave para a estabilidade da região, incluindo a Europa.
Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/circe-e-calypso.ghtml
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