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Além da retórica

Sofismas não resolvem o problema fiscal

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Imagine que uma pessoa bem acima do peso, tendo recebido do médico a recomendação de diminuir a ingestão de calorias, resolva adotar a estratégia abaixo: no mês seguinte ao do conselho, dobra a quantidade; logo depois a reduz em 20%, portanto ainda acima do que ingeria antes da consulta, mas agora afirma que “ninguém cortou as calorias tanto quanto ela naquele período”.

O argumento é obviamente ridículo. No entanto, é o mesmo empregado pelo ministro da Fazenda em artigo recente, onde afirma que o país “fez o sexto maior ajuste fiscal do mundo” em 2024, ao que parece esquecido que entre 2022 e 2023 o resultado primário do governo federal passou de superávit de R$ 63 bilhões para déficit de R$ 275 bilhões (valores devidamente corrigidos pela IPCA). Em 2024 o resultado permaneceu negativo.

A questão central, que, dentre outras coisas, propeliu o dólar no final do ano passado e ainda o mantém pressionado no começo deste ano, diz respeito ao compromisso do atual governo com as contas públicas.

Ele não é medido pelo número de bravatas proferidas pelo presidente, nem pelos simplórios sofismas do ministro da Fazenda, mas por indicações sólidas que o governo está preparado para, num horizonte minimamente razoável, produzir resultados fiscais que levem, primeiro, à estabilização do endividamento, e, em seguida, à sua redução na direção de níveis similares aos observados em países comparáveis.

Qualquer economista com alguma familiaridade com a questão fiscal sabe que um ajuste deste naipe envolve, sob condições mais favoráveis do que as observadas neste momento, valores da ordem de R$ 200 a R$ 300 bilhões.

“Não há como chegarmos em breve a resultados que estabilizem, muito menos reduzam, a dívida”

Nota-se ao mesmo tempo que as receitas não têm muito mais o que crescer. Já superam com folga a média histórica e são batidas apenas por momentos de arrecadação anormalmente elevada, associados a eventos pontuais. Adicionalmente, como ficou aparente no desempenho recente das contas públicas, por força do retorno da vinculação dos pisos de saúde e educação à receita, o aumento do ingresso hoje vira despesa maior amanhã, desfazendo à noite o que se teceu durante o dia.

Por outro lado, a resistência do governo e do PT à redução de gastos ficou explícita na aprovação do pacote de ajuste fiscal, que não corta em R$ 1 sequer as despesas federais; na melhor das hipóteses apenas modera seu ritmo de crescimento.

Dito de outra forma, não há perspectiva de chegarmos nos próximos anos a resultados que estabilizem a dívida, muito menos que a reduzam. Pelo contrário, à parte fenômenos efêmeros, como a venda de reservas, ela deve seguir em alta persistente.

À medida, porém, que cresce, o governo enfrenta o desafio de convencer o distinto público a comprar cada vez seus papéis. A única maneira de fazê-lo é aumentando a remuneração destes títulos, ou seja, com taxas de juros cada vez mais elevadas.

Juros altos são, portanto, efeito, não causa, do desequilíbrio fiscal.

Neste caso, se o governo realmente pretende derrubar os juros de maneira sustentável, sem gerar um surto inflacionário ainda mais sério do que o atual, precisa abandonar os sofismas fáceis e se engajar de fato em medidas de redução contínua do gasto.

O tempo passou na janela e só o ministro não viu.

Link da publicação: https://veja.abril.com.br/coluna/alexandre-schwartsman/alem-da-retorica/

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

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Alexandre Schwartsman