Artigos

Intersetorialidade na primeira infância

Políticas têm que ser intersetoriais porque problema de desenvolvimento é multidimensional, envolvendo o acesso à educação, saúde física e mental, assistência social, saneamento básico e justiça

Valor

As pesquisas científicas mostram que a primeira infância é uma fase fundamental na vida de uma pessoa, pois é o período de maior desenvolvimento cerebral, com cerca de 1 milhão de sinapses acontecendo por segundo, à medida que a criança vai conhecendo o mundo ao seu redor. É neste período que são construídas as habilidades cognitivas e socioemocionais das pessoas que formam a base para a sua vida adulta. Que tipo de políticas públicas podem elevar ao máximo a potência da primeira infância?

O desenvolvimento infantil, assim como vários outros fatores na vida humana, é um processo que ocorre por meio da interação entre os genes (“nature”) e o meio-ambiente (“nurture”). Crianças que vivem situações de estresse na infância, tais como pobreza, violência doméstica e discriminação, poderão ter um desenvolvimento mais lento, que pode, por sua vez, provocar dificuldades de aprendizado quando elas entram na escola. Estas dificuldades irão muitas vezes causar repetências e evasão escolar, prejudicando sua produtividade e diminuindo o seu potencial no mercado de trabalho.

Assim, é necessário evitar que estas situações aconteçam. Neste sentido, as políticas públicas têm papel fundamental, já que muitas famílias não conseguem evitar sozinhas os diversos fatores que provocam atrasos no desenvolvimento. Além disto, os investimentos em capital humano têm externalidades conhecidas, ou seja, afetam todo o conjunto da sociedade. Os programas sociais direcionados para a primeira infância podem evitar que estes problemas de desenvolvimento apareçam e também podem reverter atrasos que já estão ocorrendo, quando as crianças são expostas a ambientes e relações que oferecem risco.

Mas como devem ser as políticas públicas direcionadas para a primeira infância? Estas políticas têm que ser intersetoriais, ou seja, elas devem ser compostas por diversas ações integradas que envolvem múltiplos setores. Isso ocorre porque o problema de desenvolvimento é multidimensional, envolvendo o acesso à educação, saúde física e mental, assistência social, saneamento básico e justiça. Para que a criança se desenvolva plenamente, especialmente as que nasceram em famílias vulneráveis, todas estas partes têm que estar funcionando simultaneamente.

Por exemplo, se todas as famílias pobres de um município recebem transferências do programa Bolsa Família, as crianças conseguirão escapar da pobreza extrema. Mas se estas crianças não têm acesso à creche, elas não terão oportunidades de interagir com outras crianças, nem de receber estímulos estruturados que poderão facilitar a alfabetização. Por outro lado, se elas têm acesso garantido à creche, mas a família não recebe visitas dos agentes da estratégia saúde da família, problemas de saúde ou de violência doméstica podem passar desapercebidos. Se elas têm tudo isso, mas sua casa não tem acesso a saneamento básico, elas poderão ficar muitos dias doentes e perder aulas, por exemplo. É por isto que as políticas públicas para as crianças têm que ser intersetoriais, implementadas em conjunto, como um pacote de medidas direcionadas.

Não se sabe quantas crianças pobres têm acesso a todos os programas voltados ao desenvolvimento infantil

Um estudo recém-lançado pelo Núcleo Ciência pela Infância faz uma avaliação das políticas intersetoriais existente em vários países e destaca como os municípios podem superar obstáculos na formulação e implementação destas políticas[1]. É importante notar que o efeito de políticas intersetoriais é geralmente maior do que a soma dos programas que as compõem, devido às sinergias entre eles. Pesquisas mostram, por exemplo, que o impacto da Estratégia Saúde da Família sobre a mortalidade é maior quando as famílias também recebem o programa Bolsa Família. Isso ocorre porque o efeito da visitação domiciliar é amplificado quando as famílias não estão mais na pobreza.

O primeiro passo para a formulação de políticas intersetoriais é a construção de uma base de dados integrada com informação de todas as crianças que participam de algum programa na área social e de suas famílias, identificadas pelo CPF. Atualmente, não temos como saber se todas as crianças pobres que estão na pré-escola também estão no Cadastro Único do governo federal. Da mesma forma, não sabemos se as casas das famílias que fazem parte da Estratégia Saúde da Família têm saneamento básico. Assim, não conseguimos saber quantas crianças pobres têm acesso a todos os programas direcionados para o desenvolvimento infantil e quantas não participam de nenhum deles.

Além disto, não temos uma avaliação do desenvolvimento de todas as crianças brasileiras, como ocorre na educação, por meio do Sistema de Avaliação do Ensino Básico (SAEB), e na saúde por meio do Datasus. Para isto, deveríamos usar a caderneta da criança, que tem que ser distribuída para as mães em todas as maternidades do país e que tem um módulo de avaliação de desenvolvimento que deve ser preenchido pelo médico nas consultas pós-natais. Os dados desta avaliação também deveriam fazer parte do banco de dados unificado das crianças, até mesmo para que possamos avaliar o impacto das políticas intersetoriais.

O processo de integração das bases de dados dos diferentes programas não é tão complicado porque depende somente de tecnologias já existentes. O governo federal já faz isso com os dados de contribuintes adultos por meio do site “gov.br”, que registra dados do título de eleitor, vacinação, carteira de habilitação e até mesmo a disponibilização de declarações de imposto de renda pré-preenchidas. Assim, não é uma política que depende de adesão dos municípios, por exemplo. Além disto, uma lei aprovada em 2023 definiu que o CPF é o único número de identificação aceito nas relações entre o indivíduo e o poder público. E a nova Política Nacional Integrada para a Primeira Infância (PNIPI) já prevê a implementação de um programa de integração de informações sobre as crianças.

Uma vez que este sistema esteja pronto e seja disponibilizado para os municípios, seus gestores poderão conhecer a participação das crianças nos vários programas federais e adicionar ao sistema as informações de seus próprios programas. Depois disto, será necessário implementar a segunda fase do processo, que envolve a formulação e implementação das políticas intersetoriais nos Estados e municípios, um processo complexo que envolve várias secretarias, terá que superar vários obstáculos e que precisa de muita articulação e colaboração. Mas, isto é assunto para a próxima coluna.

[1] “ ntersetorialidade nas políticas públicas para a primeira infância: desafios e oportunidades”, Comitê Científico do Núcleo Ciência pela Infância.

Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/intersetorialidade-na-primeira-infancia.ghtml

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Naercio Menezes Filho