Entrevistas

Trump dilapida capital diplomático dos Estados Unidos, diz Celso Lafer

Ex-chanceler avalia que medidas do americano subvertem lógica da ordem mundial atual, enfraquecem multilateralismo e vão contra normas globais

Valor

O presidente americano Donald Trump gasta o capital diplomático dos Estados Unidos ao adotar medidas que subvertem a lógica da ordem mundial atual, enfraquecem o multilateralismo e vão contra, inclusive, as normas da comunidade internacional como um todo. É o que avalia o ex-ministro de Relações Exteriores e de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Celso Lafer. Em entrevista ao Valor, o ex-chanceler afirma que o republicano adota uma postura de exacerbar conflitos sem pensar nas consequências. “Ele não as mensura”, diz.

“Trump é um decisionista, rejeita se ver circunscrito por normas e está sempre pronto para identificar inimigos reais ou imaginários, numa visão hobbesiana da polarização de uma guerra de todos os contra todos”, avalia o ex-ministro.

Lafer enfatiza: “Trump dilapida o capital diplomático acumulado que os Estados Unidos têm”.

Na avaliação do ex-chanceler, as declarações de Trump sobre assumir o território da faixa de Gaza são um “despropósito” que colocam em xeque os avanços obtidos no cessar-fogo entre Israel e o grupo terrorista Hamas – do qual o americano se gaba de ter sido responsável pelo acordo. Já na perspectiva econômica, Lafer aponta que o ocupante da Casa Branca aposta nas tarifas como o “santo Graal” para “fazer a América grande de novo”; slogan do republicano repetido à exaustão tanto no primeiro quanto no início deste segundo mandato.

Lafer, ex-presidente do Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio (OMC), vê o esvaziamento do organismo multilateral que se amplia com as medidas trumpistas. O ex-chanceler acredita, no entanto, que o questionamento das medidas ultraprotecionistas americanas na instância pode render derrotas a Trump e ampliar o “soft power” da China, que já afirmou que recorrerá ao órgão contra as tarifas impostas pelos EUA.

A seguir os principais pontos da entrevista:

Valor: Como o senhor avalia a volta de Trump à Casa Branca?

Celso Lafer: A eleição e a posse de Trump exacerbaram a tendência geral da crise do multilateralismo e do desrespeito às normas do direito internacional, voltadas não só à colaboração mútua entre os Estados, mas também ao empenho de cooperações de interdependência entre eles. Trump tem como a estratégia sua própria personalidade, e a personalidade dele é de exacerbar conflitos. Ele busca a ascensão aos extremos, que é como Carl Schmitt [filósofo e jurista alemão] define a guerra na lógica de um decisionista. O presidente americano é um decisionista, rejeita se ver circunscrito por normas e está sempre pronto para identificar inimigos reais ou imaginários, numa visão hobbesiana da polarização de uma guerra de todos os contra todos [segundo o teórico inglês Thomas Hobbes, a guerra é um estado natural de conflito permanente entre os seres humanos]. Isso é visto na alegria que ele transmite ao assinar todos os dias novas ordens executivas.

Valor: Isso é visto, por exemplo, no tarifaço que ele assinou contra México, Canadá e China?

Lafer: O Maga [acrônimo para Make America Great Again, ou “faça a América grande de novo”] expressa uma vocação do unilateralismo soberano de uma grande potência. É o que está se traduzindo no campo do comércio internacional, e se vê no aumento indiscriminado das tarifas americanas. Trump as vê como o ‘santo Graal’ do sucesso do Maga. Mas isso contribui com avanços e recuos para guerras comerciais; avanços e recuos que resultam de uma calibração de respostas dos demais com base nos seus recursos de poder próprio e que derivam da interdependência do mundo. México, Canadá e China estão neste processo, fruto desta vocação para aumentar, sem nenhuma racionalidade, as tarifas. E isto, no meu entender, intensifica os riscos da vida internacional, levando à incerteza que tem, entre as suas características, a dificuldade de elaborar métricas de mensuração. Quer dizer, sabemos quanto isso vai trazer de queda ou não do PIB? Quanto isso vai ou não aumentar a inflação? Quanto isso vai ou não aumentar as tensões internacionais? Em que medida o mundo ficará mais complicado do que já está? Não só na perspectiva econômica, esse pensamento unilateral soberano também se traduz em gestos e palavras. Basta ver como Trump vem se referindo ao Panamá, à Groenlândia, ao Canadá, ao México. Basta ver o desprezo com o qual ele qualifica os imigrantes não documentados nos Estados Unidos, que devem ser expurgados até Guantánamo [prisão militar americana], e o gosto com o qual ele acentua a imprevisibilidade e a incerteza como instrumento do seu poder e dos Estados Unidos.

Valor: Neste contexto, como o senhor vê as declarações de Trump de assumir a faixa de Gaza?

Lafer: Francamente, é um despropósito. Você não pode dispor de um território como Gaza com a ligeireza com a qual ele fez esses comentários. Estamos falando de 2 milhões de pessoas, sofridas e que estão passando por todas as dificuldades imagináveis e inimagináveis. Não é possível pensar que essas pessoas queiram, primeiro, sair daquilo que consideram o seu território e, segundo, queiram ser absorvidas por Egito, Jordânia ou Líbano. Isso é, inclusive, um ingrediente de desestabilização adicional do Oriente Médio. Há ainda outra complicação: se Trump teve um papel construtivo em obter o cessar-fogo [entre Israel e Hamas] e a liberação de reféns e de prisioneiros, para poder levar isso adiante ele vai precisar contar com um apoio internacional mais abrangente, começando pelo dos países árabes. Como fará um desdobramento construtivo quando se está confrontando com algo inaceitável para eles? É inaceitável para os países árabes, assim como é inaceitável para os europeus.

Valor: Essas declarações de Trump são reflexos do passado dele como um investidor “agressivo” e agente imobiliário?

Lafer: É, mas você não pode aplicar para a vida internacional e para as soberanias aquilo que é a metodologia de um negociador imobiliário de terrenos. Não dá para fazer isso com um país, com um Estado nem com uma cidade. A minha avaliação é que Trump não está fazendo uma mensuração das consequências de suas ações. Voltando a Hobbes, ele dizia que usar a razão é enfrentar as consequências. Acho que não é esta a forma que Trump está avaliando as suas responsabilidades como presidente de uma grande potência como são os Estados Unidos. Essa postura dele vai ter desdobramentos, porque ainda tem a guerra da Ucrânia, tem a segurança europeia, tem todas as questões em torno da Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte]. Quer dizer, se ele for lidando com tudo isto da maneira em que vem falando, ele aumenta a incerteza, e não o encaminhamento de soluções.

Não se aplica à vida internacional o que é metodologia de negociador imobiliário”

— Celso Lafer

Valor: Diante da crise do multilateralismo, o que poderia barrar esse desejo de Trump de tornar Gaza uma “Riviera do Oriente Médio”?

Lafer: Seguramente isso passará por uma rejeição indiscutível no Conselho de Segurança das Nações Unidas, o que os Estados Unidos podem, no limite, vetar. Mas aí criará uma ilegitimidade adicional para a proposta. É possível que o tema vá para a Assembleia Geral, e a ONU não poderá jamais, com seus múltiplos Estados-membros, chancelar uma coisa dessas. Porque isso abriria um precedente, qualquer país poderia chegar e dizer “olha, eu quero remover à força uma parte da população com a qual eu não estou à vontade”. O precedente desta proposta é algo muito sério. Não se trata de um terreno apenas, é um território e uma população de 2 milhões de pessoas.

Valor: Ainda sobre organismos multilaterais, se a OMC não estivesse esvaziada, ela poderia reagir ao tarifaço de Trump?

Lafer: A OMC é um aprofundamento do GATT [Acordo Geral de Tarifas e Comércio, na sigla em inglês]. A organização criou o sistema multilateral de comércio baseada em normas e tem uma vocação de universalidade. Seu objetivo é promover interesses comuns através da expansão global da produção e comércio de bens e serviços. Isto é, ela vai muito além da redução de tarifas. O descumprimento das normas da OMC e a erosão centrífuga da sua eficácia vem contribuindo para a geoeconomia. Estudiosos têm chamado a atenção de que hoje em dia, na discussão do comércio exterior, prevalece o conceito de geoeconomia, em que os interesses dos países em segurança e de geopolítica ficam acima dos seus interesses de eficiência econômica. Essa mudança de pensamento é uma expressão do novo papel da geopolítica na vida internacional e das suas intenções. Inclusive, na geografia das nações e nos nacionalismos exacerbados.

Valor: Trump, ao promover o tarifaço, vai contra essas normas?

Lafer: Veja, a China disse que vai recorrer ao Sistema de Solução de Controversas da Organização Mundial do Comércio após as tarifas impostas pelos Estados Unidos. Os chineses vão pedir a criação de um painel da OMC, que vai examinar as questões e vai chegar a uma conclusão que, a meu ver, provavelmente será negativa aos EUA. A possibilidade disso ir para o Órgão de Apelação [a segunda instância], que está inoperante, é inexistente. Mas uma vitória da China no painel vai ajudá-la a regimentar apoios, o que aumentará o “soft power” chinês. Mas, o que é preciso ser dito é que deve haver uma certa racionalidade de mensuração. Trump mirou [com o aumento de tarifas] no México e no Canadá, que são dois países vizinhos com os quais os Estados Unidos têm uma relação vigorosa e de interdependência. Gerar um conflito como ele está gerando não ajuda e deve ter impacto negativo na própria economia americana.

Valor: Na prática, qual impacto de uma decisão da OMC favorável à China e negativa ao EUA?

Lafer: Naturalmente, quando você tem uma situação dessa de imposição de tarifas, vai haver o chamado “trade diversion” [desvio de comércio, em tradução literal]. Um comércio que se diversificará, talvez sem tanta racionalidade e eficiência, mas com peso. Então, os chineses tem a oportunidade e a possibilidade de ampliar o seu comércio com o resto do mundo. Isso inclui a União Europeia e inclui a nós, sem dúvida, que já temos com a China um grande parceiro comercial.

Valor: É possível pensar em um eventual isolamento dos EUA?

Lafer: A predominância do dólar, ao meu ver, vai continuar porque não existe uma moeda alternativa para as transações econômicas e financeiras internacionais. Agora, por essa exacerbação e ascensão aos extremos, Trump está levando a uma diluição do capital diplomático dos Estados Unidos. Isso terá consequências, além das econômicas e comerciais. O isolamento do país reduzirá o alcance da sua atuação internacional. O poder tem várias facetas. Uma delas é a do “hard power”, o poder duro, a força propriamente dita. Mas também há a faceta do “soft power”, da vida atrativa e da influência que isso pode ter sobre outros países. Trump dilapida o capital diplomático acumulado que os Estados Unidos têm.

Valor: Ao adotar essa postura protecionista, Trump força a ruptura da ordem mundial atual?

Lafer: É uma observação correta. A ideia de uma organização internacional do comércio e da liberalização comercial foi patrocinada pelos Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial. Naquela época do pós-guerra ainda não existia a ideia de que o comércio também era um caminho para a paz. Os EUA tiveram um grande papel na construção da governança mundial. Essas instâncias hoje não estão no horizonte de Trump.

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