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Ingenuidade climática

Folha

Poucos dias antes da posse de Donald Trumpos seis maiores bancos dos EUA anunciaram sua saída da NZBA, a aliança global de instituições financeiras para a redução de emissões de carbono. Em seguida, a BlackRock, maior gestora de fundos do mundo, também se retirou de uma organização congênere. Lamentei muito o que me pareceu falta de compromisso real com uma causa que afeta a toda a humanidade.

Relutante em emitir julgamentos sobre ações praticadas em circunstâncias diversas da minha, procurei compreender as causas desse movimento. Pareceu-me que, mais do que uma manobra oportunista, o movimento dos bancos respondeu à enorme pressão de 22 procuradores-gerais republicanos, cujas ações antitruste, de qualquer forma, inviabilizariam a atuação segundo os preceitos da NZBA.

A história está repleta de exemplos de pessoas e instituições que cedem diante de pressões. O caso dos bancos americanos lembrou-me a abjuração de Galileu Galilei diante da Inquisição, em 1633. Sua negação do heliocentrismo não impediu a Terra de girar em torno do Sol, assim como o recuo das instituições financeiras não fará o uso de combustíveis fósseis deixar de acelerar o aquecimento global.

Quando a pressão dos acidentes climáticos provocará finalmente a redução acelerada das emissões?

Em agosto de 2021, o renomado biólogo Jared Diamond atribuiu a lentidão da reação à crise climática, relativamente à celeridade da resposta à Covid, a dois fatores principais: 1) as mortes pela Covid ocorrem imediatamente, enquanto os efeitos das mudanças climáticas evoluem gradualmente provocando mortes no futuro, e 2) as mortes por Covid são claramente atribuíveis ao vírus, enquanto aquelas decorrentes do aquecimento resultam de efeitos indiretos, como inundações, incêndios e fome, tornando mais fácil a negação da causa raiz.

À época, o raciocínio pareceu-me elegante e convincente. Hoje, diante das evidências do agravamento do aquecimento global e de mortes diretamente atribuíveis ao calor, já não me convence.

A constatação de que tal agravamento não trouxe avanços na coordenação das políticas climáticas tornou evidente que há ao menos um fator que Jared Diamond deixou de considerar: diferentemente da Covid, as políticas ambientais de reação ao aquecimento têm poderosos adversários.

Explico: não houve nenhuma oposição organizada ao desenvolvimento de vacinas contra a Covid; houve, sim, governantes que cruzaram os braços e reagiram às políticas de distanciamento, nada mais do que isso. Já no caso das mudanças climáticas, os países produtores de petróleo e a indústria global de óleo e gás têm investido bilhões em lobby, campanhas de desinformação e manobras para enfraquecer os acordos climáticos globais.

O apoio ostensivo do setor de óleo e gás ao candidato republicano nas eleições mais recentes nos EUA foi recompensado já no anúncio de suas primeiras “ordens executivas”, que incluíram a revogação de regulamentações ambientais e o apoio à expansão da infraestrutura de combustíveis fósseis, além de retirar o país do Acordo de Paris.

Recentemente, lendo a extensa cobertura dos incêndios de Los Angeles, ocorreu-me mais uma incorreção da tese que eu a princípio considerei tão esclarecedora: Diamond parte da ideia de que são as mortes o fator deflagrador do enfrentamento, tanto da pandemia quanto do aquecimento global. Hoje, tenho a impressão clara de que as perdas financeiras, não as mortes, são a motivação determinante para a reação.

Segundo essa hipótese, o enfrentamento da Covid não se teria dado de forma tão célere para evitar a morte de 5 milhões, 10 milhões, 30 milhões ou mesmo 100 milhões de pessoas (que, é bom lembrar, corresponderiam a “apenas” 1,25% da população mundial).

A rapidez se teria devido ao fato de que a economia mundial enfrentava uma parada súbita e as perdas financeiras seriam insuportáveis para todas as economias do planeta.

O custo econômico do aquecimento global é inegável, mas ocorre gradualmente e de forma desigual entre os países, afetando especialmente as economias mais frágeis. Para alguns países e para agentes, como o setor de petróleo, os ganhos imediatos superam em muito os custos, explicando sua atitude de solapar os esforços globais para a redução acelerada nas emissões de carbono.

Essa percepção —que, por agora me parecer óbvia, não é menos chocante— tornou-se clara ao comparar a intensa cobertura dos incêndios de Los Angeles com a atenção reduzida a desastres com igual ou maior número de mortes, como as enchentes no Kentucky ou os incêndios no Havaí.

Os artigos da imprensa americana logo deixaram de tratar das 25 mortes para se preocupar com os efeitos econômicos dos incêndios. A consequência mais grave está ligada à atividade de seguros. O que preocupa não é exatamente o prejuízo em que as seguradoras possam incorrer, nem mesmo o aumento no custo do seguro para os proprietários de imóveis; o grande receio está em que as seguradoras se recusem a segurar imóveis em um número crescente de áreas do país.

A ausência de seguro, dadas as condições do mercado imobiliário americano, torna virtualmente impossível ao proprietário a venda do seu imóvel. Isso porque os compradores sempre fazem uso de financiamento hipotecário e esse só se realiza mediante seguro do bem. O teor das reportagens pareceu-me classificar o risco de iliquidez no mercado imobiliário como mais ameaçador que as 25 mortes.

A estarem corretas as considerações acima, a coordenação global para enfrentar o aquecimento só virá quando as perdas financeiras superarem os ganhos imediatos da queima de combustíveis fósseis.

Pensei que a familiaridade com o mercado financeiro torna difícil entender minha surpresa e decepção com a supremacia da economia sobre a vida, no mundo real.

A expectativa de que aqueles que lucram com o óleo e gás alinhem-se à estratégia que visa preservar as condições de vida na Terra lembrou-me uma passagem do maravilhoso filme “Giordano Bruno”, de 1973 (disponível no YouTube, com Gian Maria Volonté e a deslumbrante Charlotte Rampling).

Acusado de heresia pela Inquisição romana, Bruno —diferentemente de Galileu Galilei, poucas décadas mais tarde— decide não abjurar e é condenado à morte na fogueira. Pouco antes desse desfecho diz a frase que eu, adolescente, ouvi minha mãe citar tantas vezes:

“Pedir a que tem o poder que reforme o poder; que ingenuidade!”.

Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2025/02/ingenuidade.shtml

As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Candido Bracher