Estadão
Conheci Jerome Kohn – Jerry – em 1970 em Nova York. Ele era naquela ocasião o próximo e dedicado assistente acadêmico de Hannah Arendt na New School for Social Research. Ele me recebeu no prédio da faculdade para me levar ao escritório de Hannah Arendt. Foi quando com ela conversei sobre a publicação de sua obra no Brasil, tendo como pano de fundo o privilégio de ter sido seu aluno de pós-graduação em 1965 na Universidade Cornell. Da conversa resultou em 1972 a publicação inaugural de Entre o Passado e o Futuro, pela Perspectiva, que ela acompanhou com interesse. Ponderou que seu único contato com a nossa língua tinha sido percorrer – sem muito entender, mas com o auxílio de seu latim e francês – os jornais em Lisboa na sua libertatória travessia da Europa nazista para os Estados Unidos.
O ano de 1970 foi assim o ponto de partida do meu perdurável e amigo convívio intelectual com Jerry, que se prolongou até o seu falecimento em novembro do ano passado. Não vivendo nos Estados Unidos, não tive a oportunidade, como outros dos seus amigos, de estar com ele continuamente. Encontrei-o, no entanto, no correr dos anos, quando estive em Nova York. Trocávamos ideias e reminiscências sobre a vida e a obra de Hannah Arendt, sua pertinência para o entendimento do mundo em que estamos inseridos, que foram acompanhadas por correspondências e e-mails trocados no andar dos tempos.
Compartilhei com Jerry o privilégio de ter sido aluno de Hannah Arendt e, nós dois, assim como Elizabeth Young-Bruehl – sua primeira notável biógrafa –, abrimos nossas mentes para o sopro da fermenta cognitionis de seu pensamento como alunos de seu curso “Experiências Políticas do Século 20”, dado em Cornell em 1965 e na New School em 1968, no qual iluminou de viva voz os temas recorrentes de seu percurso. Escrevi assim, com ele, sobre o significado desse memorável curso que foi o vínculo comum compartilhado da nossa contínua devoção ao legado de Hannah Arendt.
Jerry foi próximo de Hannah Arendt, de sua pessoa, de sua forma mentis e de sua maneira de ser. Organizou com excepcional zelo de curador os seus papéis para a biblioteca do Congresso dos EUA e ninguém teve conhecimento mais apurado do que revelam e iluminam sobre a sua trajetória. Compartilhou o seu conhecimento e erudição com amigável generosidade com todos os muitos que foram se interessando pela vida e pela obra de Hannah Arendt.
Quando nós dois fomos seus alunos, Hannah Arendt era desde a publicação em 1951 de As Origens do Totalitarismo uma personalidade acadêmica conhecida, mas que suscitava controvérsias. Não tinha alcançado – o que se deu depois de seu falecimento em 1975 – o status de uma reconhecida, admirada e original pensadora do século 20. Converteu-se nos mais diversos quadrantes culturais num “clássico”, na acepção de Italo Calvino – sua obra e sua pessoa nunca terminam de dizer o que têm para dizer.
Jerry contribuiu para transformar Hannah Arendt num “clássico” ampliando o corpus do fermenta cognitionis de sua obra no devotado exercício da sua responsabilidade de curador testamentário do espólio de sua obra.
Essa ampliação do largo alcance do corpus da obra arendtiana foi o fruto dos muitos volumes que, a partir de 1994, editou, organizou, apresentou e anotou, de textos não publicados ou não previamente por ela inseridos na sua obra. Todos corporificam inexcedível devoção acadêmica, discernimento e erudição. Alargam a compreensão dos fios do pensamento de Hannah Arendt, o alcance de seus conceitos e categorias e os traços de sua admirável e fascinante personalidade.
São acessíveis ao leitor brasileiro. Elenco-os na cronologia de sua publicação no Brasil: Responsabilidade e Julgamento, 2004; Compreender: Formação, Exílio e Totalitarismo; Ensaios (1930-1954), 2004; Escritos Judaicos, em colaboração com Ron Feldman, 2016; Pensar sem Corrimão: Compreender (1953-1975), 2021.
O volume que organizou The Promise of Politics (2005) não foi publicado entre nós. Todavia, parte de seu conteúdo são fragmentos de uma obra não concluída escrita em alemão nos anos 1950, sobre O que é Política?, que está inserida no livro de mesmo título organizado superiormente por Ursula Ludz, publicado entre nós em 1999. O livro organizado por Jerry tem a vantagem da abrangência, pois inclui cinco grandes ensaios de Hannah Arendt. Estes são esclarecedores do seu modo de elaborar e conceber a teoria política, oferecendo o contexto mais abrangente da moldura dos fragmentos de uma instigante obra – esboçada mas não concluída.
Jerry recebeu o prestigioso Prêmio Hannah Arendt, que tem sido concedido aos grandes estudiosos de seu legado. Na ocasião a ele escrevi, em 17 de dezembro de 2019: “Nenhum nome é mais indicado do que o seu para receber esta distinção. É um muito merecido reconhecimento das múltiplas dimensões de sua contínua devoção à vida e legado de Hannah Arendt. É um ato de justiça. Corresponde ao princípio romano da suum cuique tribuere”.
Link da publicação: https://www.estadao.com.br/opiniao/celso-lafer/jerome-kohn-e-o-legado-de-hannah-arendt/
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