Discussão de como melhorar a máquina pública e reduzir seu peso proporcional na despesa ganha espaço entre especialistas e governo
Valor
Em meio à crescente inquietação com a sustentabilidade das contas públicas e resistências de alas do governo em realizar uma reforma administrativa profunda no Congresso, crescem as preocupações em relação às despesas do poder público com o funcionalismo em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) e com os altos custos do Judiciário.
Como consequência, especialistas e governo têm intensificado as discussões sobre formas de melhorar a gestão de recursos humanos da máquina pública. O Valor inicia hoje uma série de reportagens sobre a eficiência do Estado. Esta primeira trata da gestão de pessoas nas três esferas de governo.
Para Bruno Carazza, colunista do Valor, professor associado da Fundação Dom Cabral e autor dos livros “O País dos Privilégios” e “Dinheiro, Eleições e Poder”, não faltam evidências de que há algo errado no funcionalismo brasileiro. Ele lembra que a quantidade de servidores públicos aqui não é muito diferente da média das economias avançadas. No entanto, acrescenta, o custo é bem maior.
Aos números: servidores nas três esferas de governo eram 12,2% da força de trabalho, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) em 2020. Nações avançadas empregam cerca de 17,9%, conforme dados da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Nos extremos, estão a Noruega, com 30,7% da população, e o Japão, com 5,9%.
No entanto, as despesas com salários dos servidores consomem 13% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, contra 8,7% do PIB dos Estados Unidos e 11,8% do PIB da França, por exemplo. No México são 4,7% do PIB, e, no Chile, 7,2% do PIB. O custo aqui é parecido com o dos países nórdicos, onde o padrão de atendimento à população é “notoriamente superior” ao brasileiro, apontou.
Considerando o conjunto das despesas dos governos, acrescenta Renato Fragelli, professor associado da Escola de Pós-Graduação em Economia (EPGE) da FGV, o setor público brasileiro “engole” um terço do PIB. “Mas vemos ineficiências em vários setores”, afirmou. O Judiciário caro e lento, o arcabouço jurídico que favorece litígios, o desarranjo macroeconômico e a crise na segurança são elementos que tornam o capitalismo brasileiro mais lento, disse.
Em outras palavras, complementa Fragelli, enquanto sobra Estado em áreas onde não seria necessário, como em algumas empresas estatais, falta Estado em áreas como educação, saúde e segurança. Na sua visão, isso explica o clima conflituoso que se instalou na sociedade. A repulsa a pagar mais impostos seria sinal desse descontentamento.
Desde 2013, quando a turma foi para as ruas, existe cobrança por melhora de serviços”
— Arminio Fraga
“Desde 2013, quando a turma foi para as ruas, existe uma cobrança por melhora de serviços em geral”, comenta o ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga, que em parceria com a economista Ana Carla Abrão e com o professor titular da Fundação Getulio Vargas Direito SP Carlos Ari Sundfeld, elaborou uma proposta para um novo RH do setor público.
A proposta de Arminio, Ana Carla e Sundfeld foi formulada tendo em vista os seguintes objetivos: melhora na qualidade dos serviços públicos, aumento da produtividade do setor público (o que teria impacto na economia em geral) e redução da máquina pública, contribuindo para reverter a trajetória de crescimento da dívida. A ideia seria aplicar a reforma no governo federal e replicá-la para Estados e municípios. Está consolidada em uma minuta de projeto de lei complementar discutida desde 2018, mas que ainda não tramita no Congresso Nacional.
Os pilares da reforma são: diminuição do número de carreiras, planejamento unificado da força de trabalho e, como peça principal, implantação de avaliação unificada de desempenho dos servidores. Haveria um período de “moratória” entre a aprovação dessa lei complementar e das leis ordinárias necessárias a seu detalhamento. Nesse período, não poderia haver concursos nem nomeações.
“É disso que se trata, e isso pode ser extremamente popular, à medida que se faça sentir no dia a dia o bom funcionamento das várias áreas de Estado”, comentou Arminio.
O trio propõe uma abordagem diferente daquela constante da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32, apresentada e depois abandonada pelo governo de Jair Bolsonaro em 2020. O objetivo mais conhecido daquela iniciativa legislativa era eliminar a estabilidade do servidor público e assim abrir caminho para uma redução de gastos na área.
É uma abordagem “errada e inútil”, classificou Sundfeld. A estabilidade, afirmou, é importante para impedir perseguição por razões políticas, religiosas, de orientação sexual e outras. “O problema não está na estabilidade, o problema está na ausência de avaliação de desempenho”, afirmou.
A proposta, por isso, é centrada em um programa de avaliação de desempenho a partir do qual será possível dispensar os que não estejam apresentando os resultados desejados. A Constituição já permite isso, mas não raro essas demissões são revertidas pela Justiça por falha na instrução. Falta objetividade aos critérios.
O Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI), comandado por Esther Dweck, tem adotado medidas de maneira silenciosa nessa direção. Mas há resistências do funcionalismo para implementá-las.
“Todos os passos que eles têm dado mais recentemente estão muito na linha do que é possível fazer num governo mais alinhado com os sindicatos”, comentou Ana Carla. “Eu gostaria de ver essa agenda com mais apoio governamental, inclusive com mais apoio para a própria ministra.” O apoio permitiria avançar na agenda de forma mais contundente, comentou.
Em recente entrevista ao Valor, Dweck mostrou como a avaliação de desempenho está na raiz de muitas mudanças que quer implementar. “A partir do momento que você tem uma boa avaliação, pode fazer o que quiser: demitir por baixo desempenho, cortar salário de quem não trabalha direito, não efetivar depois do estágio probatório [o período de três anos cumprido por recém-concursados antes de ganhar estabilidade].”
Existe uma avaliação de desempenho no setor público, mas tem sido pouco efetiva. Baseada em critérios subjetivos, o chefe avalia sua equipe. Geralmente, dá nota máxima a todos, para não criar “climão” e porque, entre funcionários estáveis, o chefe de hoje é o subordinado de amanhã.
O sistema em implementação por Dweck é diferente. Nasceu no fim da pandemia, quando estava em discussão se o trabalho remoto seria mantido ou não.
No novo modelo, o controle da presença por meio de relógio de ponto foi substituído por um conjunto de metas estabelecidas para cada servidor. Essas metas, por sua vez, derivam dos objetivos que a unidade administrativa quer alcançar, consolidados nos chamados Programas de Gestão e Desempenho (PGDs).
O servidor é avaliado pelo conjunto de entregas que faz, conforme acertado com a chefia, e não pelo número de horas que passa na repartição. “A gente sabe que nem todo mundo que está sentado na frente do computador está efetivamente trabalhando”, comentou a ministra.
Problema não está na estabilidade, mas na ausência de avaliação de desempenho”
— Ari Sundfeld
Hoje, cerca de 40% dos servidores do Executivo estão em PGD. “Desses, a gente capta as informações dos planos de trabalho individualizados e as avaliações, se eles cumprem ou não”, explicou Dweck. “Se a pessoa não cumprir, ela pode ter redução de salário e punição associada a isso.” O plano entrou em vigor este ano.
O banco de dados será um sistema de avaliação independente de chefes. “Vamos poder comparar servidores e ver quem está trabalhando demais ou quem está trabalhando de menos”, disse a ministra.
Para ampliar a quantidade de servidores nesse sistema, a Medida Provisória (MP) 1.268, que trata do reajuste salarial de diversas carreiras do serviço público, determina que a progressão dos servidores dependerá dos resultados da avaliação de desempenho individual.
Os aumentos salariais foram moeda de troca também para avançar em outra frente: aumentar o número de faixas salariais das carreiras, alongando o prazo entre o ingresso do funcionário e sua chegada ao topo, além de diminuir o salário de ingresso. Esses são itens importantes da versão original da PEC 32. “Mas não precisa de PEC para isso; precisa negociar”, argumentou Dweck.
Outro ponto atacado na proposta de Fraga, Ana Carla e Sundfeld é o fato de o servidor, uma vez aprovado em concurso, ganhar estabilidade pelo simples decurso de três anos, sem uma avaliação se é ou não adequado para a função que ocupa. Isso também foi mudado, com a edição do Decreto 12.374, no último dia 6. O concursado passará por três ciclos de avaliação, além de cursos de formação. Ao final, será decidido se fica ou é demitido.
Esse é outro procedimento que existe, mas é de difícil aplicação. Funcionários que são demitidos antes da estabilidade recorrem à Justiça.
Esse ponto de insegurança foi atacado no ano passado, com a aprovação da Lei Nacional do Concurso Público, contou Sundfeld. Em seu ponto central, ela autoriza a administração pública a fazer provas de adaptação como requisito para aprovação no concurso. “Se ele [o concursado] não aparece, não está interessado, se ele não dá para aquilo, ele é reprovado no tal curso e o resultado do curso vale para o concurso”, explicou.
Evidentemente, há como aprimorar ainda mais o processo. O próprio concurso poderia ser modificado para buscar pessoas com perfil mais adequado, disse o professor. Por exemplo: algumas instituições de ensino selecionam docentes mediante uma prova prática, uma aula. É mais caro do que aplicar uma prova em papel em que os candidatos marcam “x”, ponderou. Porém, é uma seleção mais focada que tem mostrado bons resultados.
Na visão de Ana Carla, o principal desafio para a agenda da reforma administrativa é a resistência dos sindicatos, que têm grande poder de articulação no Congresso Nacional e ligação histórica com o PT do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A agenda do MGI tem enfrentado oposição, por exemplo, da Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (Condsef), que tem em sua base as carreiras intermediárias do funcionalismo. A entidade critica o que considera ser “ênfase excessiva” na produtividade e no mérito individual.
“Partimos do combate à tecnocracia e a uma visão elitista de gestão que intentam impor uma ideia de modernização esvaziada de conteúdo político, o que desconsidera as demandas sociais e trabalhistas e aprofunda desigualdades sistêmicas”, afirmou o secretário-geral da entidade, Sérgio Ronaldo da Silva.
Os servidores, acrescentou, têm um papel “central” nesse combate, “especialmente diante da implementação de diversas inovações estruturadas a partir da lógica do mercado sem um debate adequado; dos novos programas voltados à gestão e ao desempenho; e do uso crescente da inteligência artificial.”
Tido como representante das carreiras de elite do funcionalismo, o Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate) encara a agenda do MGI com cautela. Os PDGs são necessários, avaliou o presidente, Rudinei Marques. “Mas, para ir além disso, teremos de discutir.”
O grande ponto de estresse, disse, está na possibilidade de demissão por insuficiência de desempenho. “Hoje já existe essa possibilidade, mas ainda não houve regulamentação plena do dispositivo constitucional que trata disso.”
O aumento do número de etapas que o servidor precisa percorrer até chegar ao topo da carreira também é visto com ressalvas pelo representante dos servidores. De acordo com a pasta da Gestão, hoje 86% das carreiras têm 20 níveis de progressão, ante 30% em 2023. A medida vem combinada com a redução dos salários iniciais.
O movimento não surpreende, disse Marques, porque a reforma da Previdência já exige tempo maior de permanência do servidor na ativa até a aposentadoria. Carreiras mais longas seriam reflexo dessa decisão. “O MGI não precisava ter colocado na mesa, porque tem competência para fazer isso [aumento do número de níveis]”, comentou. “Como a gente estava precisando de reajuste, a maioria aceitou o acordo dessa maneira.”
A resistência das corporações e o desmonte de propostas do Executivo no Congresso Nacional podem ser vistos, por exemplo, na tentativa de barrar o pagamento dos “supersalários” – aqueles que superam o teto estabelecido na Constituição, que é o salário dos ministros do Supremo Tribunal Federal, atualmente em R$ 46.366,19.
O pacote de ajuste fiscal enviado pelo governo ao Congresso em novembro passado continha, entre seus itens, a inclusão de um dispositivo na Constituição que remetia a regulamentação dos supersalários a uma lei complementar, explicou Carazza. Os congressistas modificaram esse texto, estabelecendo regulamentação por lei ordinária.
Parece um detalhe, mas isso faz com que seja retomada uma proposta que já tramita no Legislativo como projeto de lei ordinária. Já aprovada na Câmara, a proposição “praticamente legitima todos os penduricalhos”, avaliou. Falta passar pelo Senado, o que está “na boca” para ocorrer, acrescentou.
“Há carreiras com poder de pressão muito grande sobre a classe política”, afirmou o professor da Fundação Dom Cabral. “Imagine um parlamentar, o medo que tem de um promotor, de um procurador do Ministério Público, de um juiz.” Outras carreiras também buscam formas de receber acima do teto. “São outras carreiras igualmente poderosas: os fiscais da Receita, os delegados da Polícia Federal, os advogados públicos.”
As carreiras de elite do funcionalismo conseguem “furar” o teto salarial porque a Constituição permite que indenizações fiquem fora do limite, explicou Sundfeld. Essas não são classificadas como remuneração, e por isso também são isentas do Imposto de Renda. “Começaram a usar essa ideia de indenização para pagar verbas com pretextos variados, e o céu é o limite”, disse. “É um problema muito grave porque é um desperdício de recursos com a elite do funcionalismo.”
Na visão do professor, a prática tem mais espaço no Judiciário porque “está sobrando dinheiro”. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), explicou, estabelece percentuais fixos do Orçamento a serem destinados ao Judiciário, ao Ministério Público. O que vem ocorrendo é que esses orçamentos têm se mostrado “grandes demais”. Assim, ele sugeriu alteração na LRF para limitar os repasses e assim forçar ganhos de produtividade.
Link da publicação: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2025/02/19/gasto-com-servidores-e-custo-do-judiciario-indicam-falta-de-eficiencia-do-estado.ghtml
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