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Finanças climáticas ao largo

A sobretaxação do comércio marítimo, notadamente de alimentos, é surpreendente vista a pequena contribuição desse setor para as emissões globais e a ausência de alternativas de mitigação atualmente

Valor

O consumo mundial de combustíveis fósseis atingiu novos recordes em 2024, com destaque para o carvão, com 9 bilhões de toneladas (Bt), sendo 55% dele na China. O carvão é a maior fonte de gases de efeito de estufa, com emissões anuais de mais de 15 Bt de CO2 e sem indicações de redução imediata.

O consumo de petróleo ultrapassou 100 milhões de barris por dia, ou mais de 5,5 Bt por ano, com emissões além de 12 Bt de CO2 no ano passado.

O gás natural cresce e já responde por 40% do total de energia consumida nos Estados Unidos (49% com as frações líquidas), à frente do petróleo (27%) e do carvão (12%), cuja participação vem caindo. As emissões mundiais do gás já ultrapassam 9 Bt CO2.

Em contrapartida, a produção de eletricidade com energia renovável não chega a 10 mil TWh (860 Mt de petróleo) por ano, apesar de vir crescendo a taxas de dois dígitos. Incluindo a energia hidrelétrica, ela já responde por 14,6% da energia primária global.

Dois terços do carvão são usados na geração elétrica, enquanto, para o petróleo, quase dois terços vão para os transportes, dos quais 45% são para veículos leves, 25% para caminhões, perto de 15% para aviação e meros 12% para o transporte marítimo, apesar de ele corresponder a 80% do volume transportado no mundo. As emissões do transporte marítimo são estimadas entre 0,7 e 1 GtCO2 eq, ou perto de 2% das emissões globais. Elas, assim como as do tráfego aéreo internacional, não estão, em princípio, incorporadas aos inventários de nenhum país.

Os principais emissores de CO2 no mar são os navios porta-contêineres, por conta da sua velocidade. Eles respondem por 30% das emissões, seguidos pelos petroleiros e navios transportadores de gás natural, que juntos entram com mais 30%. Os navios de granel seco contribuem com 27% das emissões, e os de passageiros, carga geral e outros com os 12% restantes.

Uma preocupação com as emissões do transporte marítimo levou a União Europeia (UE) a incluir o setor recentemente no seu mercado de carbono regulado (EU-ETS), com um calendário de cobrança parcial já a pleno vapor a partir de 2027. Nele, todas as emissões de viagens entre portos da UE e metade daquelas de viagens de ou para portos a mais de 300 milhas dela estarão sujeitas à cobrança.

Os navios sujeitos ao EU-ETS não receberão nenhuma cota (allowance) gratuita, em contraste com os setores instalados em terra, cuja cota gratuita corresponde a até 90% das suas emissões. Considerando que cada tonelada de combustível usada gera 3,15 tMCO2 e que uma cota no EU-ETS custa US$ 70-100/tMCO2, a sobretaxa chegará a US$ 250/t de bunker, ou até 40% adicionais ao preço atual do combustível, o qual representa frequentemente 50% do frete de navios mais simples, como os graneleiros. Ou seja, trata-se de um aumento de 20% no frete, com consequências para o comércio mundial em um momento delicado.

Taxas sobre emissões do transporte marítimo poderiam custar ao Brasil cerca de US$ 10 bilhões anuais

Na esteira da Europa, tem havido grande movimentação na Organização Marítima Internacional (IMO, na sigla em inglês) para também cobrar pelas emissões do comércio marítimo internacional, em horizonte muito curto. Ainda não há consenso do preço que a IMO cobraria, pois se fala de US$ 20 a US$ 200/tCO2. O impacto de uma sobretaxa de US$ 100 será grande para exportadores de alimentos como o Brasil.

Uma viagem Santos-Xangai leva cerca de 50 dias. Um Capemax de 100 mil toneladas consome 50t de combustível e emite 150tCO2 por dia de viagem. No caso da volta vazia, serão perto de 100 dias por viagem, ou 15.000 tCO2 emitidos, o que sugeriria uma sobretaxa de US$ 1,5 milhão. Adicionar US$ 15 à tonelada exportada representaria quase 5% do preço da soja em Paranaguá.

O Brasil exporta 100Mt de soja, e a sobretaxa poderia criar uma cunha de US$ 1,5 bilhão ao ano. Se o minério for na mesma toada, serão outros US$ 6 bilhões. A conta também poderá ser salgada para o petróleo podendo chegar a US$ 2 bilhões/ano para a atual exportação de 2M bbl por dia (100Mt ano), e subir mais 30-40% até 2035. No total, uma conta rudimentar apontaria para perto de US$ 10 bilhões, sem contar os 40Mt de milho exportado. Essa cifra – anual – pode ser vista como cinco vezes maior do que a que foi desembolsada pelo conjunto de fundos verdes globais e mais do que a efetiva capitalização dos bancos de desenvolvimento na última década. Com o agravante de que não está claro como o dinheiro levantado seria usado, já que ele seria recolhido do armador, ainda que seu custo incida no preço de exportação do bem.

Evidentemente, o quid pro quod desejável em um cenário desses é que os eventuais US$ 10 bilhões ao ano levantados viessem a ser aplicados na Amazônia, inclusive na compra de créditos de carbono da preservação e restauração da floresta ou na capitalização do Fundo das Florestas Tropicais para Sempre (TFFF). Eles também poderiam ajudar a financiar a produção de aço verde aqui, criando uma demanda efetiva por hidrogênio verde e cortando a quantidade de minério exportado. Assim, se juntariam temas chave de interesse dos países do “Sul” na COP30, como créditos de carbono, industrialização e finanças climáticas efetivas e em escala.

A sobretaxação do comércio marítimo, notadamente de alimentos, é surpreendente vista a pequena contribuição desse setor para as emissões globais e a ausência de alternativas de mitigação atualmente. A solução que o Brasil encontrou nos anos 1970-80, do navio OBO levar minério ou grão e trazer petróleo, não se aplica mais, pois também exportamos óleo e não importamos carvão (e.g., África do Sul). O gás natural não reduz as emissões de CO2 (há risco de aumentá-las, pela fuga do gás) e a propulsão eólica não emplacou, especialmente para navios grandes. O metanol ou amônia verde não são competitivos, nem com uma sobretaxa de US$ 100/tCO2, e aumentariam o frete.

Assim, será importante acompanhar as decisões na IMO para os alimentos não serem sobretaxados e para que eventuais recursos levantados sobre outras exportações sejam mobilizados para proteger a Amazônia e desenvolver indústrias verdes no Brasil, dando corpo às chamadas finanças climáticas. O que só vai ocorrer se o Brasil estiver presente.

Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/financas-climaticas-ao-largo.ghtml

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Sobre o autor

Joaquim Levy