Entrevistas

Trump tem atitude de especulador imobiliário na política comercial, diz ex-chanceler de FHC

Para Celso Lafer, ex-ministro das Relações Exteriores e do Desenvolvimento, presidente americano está dilapidando o ‘soft power’ do seu país ao adotar atos ‘inamistosos’ contra aliados históricos

Estadão

Atual presidente do conselho curador da Fundação FHC, Celso Lafer esteve à frente, durante os governos de Fernando Collor e de Fernando Henrique Cardoso, dos ministérios do Desenvolvimento, Indústria e Comércio e das Relações Exteriores. São exatamente essas as duas pastas que hoje precisam lidar com as ameaças tarifárias do presidente americano, Donald Trump, que está trazendo uma abordagem mais belicosa das relações comerciais e diplomáticas entre países, até mesmo quando envolve negociações com aliados.

Lafer defende o que chama de “diplomacia do concreto” para o Brasil lidar com as ameaças nas relações tarifárias. Isso significa um trabalho árduo de analisar linha por linha de tarifas adotadas e responder de uma forma pragmática, para se evitar prejuízos econômicos ao Brasil.

Mas, em entrevista ao Estadão, ele também vai além da abordagem prática e analisa as linhas gerais das relações internacionais que estão se reconfigurando no novo governo Trump. Lafer demonstra preocupação com a perda de soft power dos Estados Unidos e com uma grande guerra comercial pelo mundo, o que pode acabar até beneficiando a China.

Leia os principais trechos da entrevista.

O Brasil pode evitar a imposição de tarifas mais altas para seus produtos, apresentando argumentos racionais de que não prejudicamos a economia americana, e de que mais ajudamos a ela do que a prejudicamos?

O Brasil, comparado com outros países, tem uma posição relativamente mais fácil. Ele não está no coração das tensões internacionais e não coloca riscos maiores para outras economias. Inclusive, os Estados Unidos têm superávit contra o Brasil.

O que vai dificultar, então, nas negociações é que Trump parece querer tirar vantagem em cada ponto, ou pelo menos se colocar em posição de reciprocidade, segundo ele tem declarado?

Ele tem uma atitude de especulador imobiliário. Trump acha que o comércio mundial é um terreno em que ele pode obter deals, para obter o melhor negócio. Mas isso traz resultados negativos. Os Estados Unidos têm hard power, mas também tem o soft power, por meio da sua reputação. Eu acho que o Trump está dilapidando o capital diplomático dos Estados Unidos.

De que forma isso está acontecendo?

Por meio de acabar com uma agência com o USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional), por exemplo. Ou como se criou essa atitude quanto ao Canadá, como a gente está vendo. Com isso, há um antiamericanismo crescente. As pessoas deixam de comprar produtos norte-americanos. Surgem boicotes, e outras reações dessa natureza.

O soft power, inclusive, é uma das grandes vantagens dos Estados Unidos em relação à China. O americano é muito mais poderoso, muito mais influente pelo mundo, até por conta da indústria cultural. É arriscado perder essa grande vantagem? E a China pode se beneficiar do tratamento dado por Trump a seus aliados, como se fossem inimigos?

Sem dúvida nenhuma. A China se beneficiará, penso eu, dessa dinâmica que o Trump está colocando. Sendo que, se no campo do comércio o tamanho do mercado é uma dimensão do seu poder, a China tem poder. Ela pode encontrar vantagens, redirecionar o seu comércio, a partir de perdas dos Estados Unidos.

Qual é a lógica de negociação de Trump?

O Trump tem a estratégia da sua personalidade. Ele é um decisionista. Ele exacerba o conflito. Ele rejeita ser circunscrito por normas. Ele aprecia as polarizações. Está sempre pronto para identificar inimigos reais ou imaginários. Isso se materializa na sua conduta interna em relação às instituições norte-americanas, como algo que ele não deseja ver frear as suas intenções. Daí, esse número de ordens executivas que ele vem diariamente apresentando. E isso se expressa no exercício do unilateralismo soberano de uma grande potência e do poder que os Estados Unidos possuem. Como mencionei que, no campo econômico, o tamanho do mercado é uma dimensão de poder, é essa a dimensão de poder que ele está procurando traduzir em palavras e políticas. Em palavras, basta ver como ele se referiu ao Panamá, ao Canadá, ao México e eu não vou entrar nem nesse capítulo mais recente da Ucrânia. Em políticas, é o caso dessa postura dele em relação à elevação generalizada de tarifas.

Ele vê a diplomacia internacional como algo estritamente transacional, desconsiderando as dimensões geopolíticas e de boas relações diplomáticas?

A maneira do Trump ser nada tem a ver com a com a comitas gentium da diplomacia, a cortesia. É apenas a expressão de atos inamistosos. Suas palavras e políticas se apresentam como atos inamistosos. E elas podem levar a contramedidas por parte dos Estados atingidos por essas iniciativas, que buscarão fazer respeitar e proteger os seus interesses. Essas contramedidas resultarão de uma calibração do possível, que serão fruto da economia e do poder dos atingidos pelo unilateralismo do Trump. Por exemplo, é visível que, no caso do Canadá e do México, que têm uma parte preponderante dos seus comércios e das suas economias ligada aos Estados Unidos, eles são mais vulneráveis do que outros países.

E qual a posição dos mecanismos multilaterais em meio a tudo isso?

As normas do direito internacional têm funções. A norma indica como é a expectativa das condutas possíveis dos atores internacionais e, ao mesmo tempo, informa sobre os padrões de conduta aceitáveis. Nesse contexto, o GATT (sigla em inglês para Acordo Geral de Tarifas e Comércio) e depois a OMC (Organização Mundial do Comércio) criaram um sistema multilateral de comércio dirigido por normas, que buscam conferir uma dimensão de previsibilidade ao comércio internacional. E esta previsibilidade das expectativas tem um papel na dinâmica de funcionamento do mercado. O GATT, quando foi criado, logo após a Segunda Guerra Mundial, foi uma reação aos protecionismo dos anos de 1930, e trouxe a ideia do comércio como um caminho de paz. Então, foram criadas normas de mútua colaboração voltadas para a gestão cooperativa da interdependência dos Estados do mundo. Agora, o tal do MAGA, o Make America Great Again, contrapõe-se ao multilateralismo, acentua a imprevisibilidade e a incerteza, como instrumentos de poder dos Estados Unidos na gestão Trump. No campo do comércio internacional, isso se verifica pela proposta do aumento indiscriminado de tarifas. O Trump não acredita em muita coisa. Mas as tarifas são para ele o Santo Graal do MAGA. Ele vê na tarifa o caminho de contribuir para fazer a América grande de novo. E também mostram a inclinação autárquica que caracteriza a visão dele. É um convite para guerras comerciais.

Isso não coloca aliados e inimigos no mesmo saco, e faz os países pensarem se há grandes vantagens em se aliar aos Estados Unidos?

Trump alega que há uma falta de reciprocidade dos parceiros comerciais dos Estados Unidos, que eles se aproveitam do seu país. É isso o que ele vem dizendo das mais variadas maneiras. Para fazer uma pequena reflexão da origem da palavra, reciprocidade vem do latim, reciprocare. É o fluxo do fazer ir e do fazer vir. A reciprocidade é uma fonte material da criação e da aplicação das normas do direito internacional. Ela não é uma invenção do GAAT, nem uma invenção do Trump. A reciprocidade aparece na tradição bíblica como uma regra de conduta. Não faças nunca ao outro o que não quererias que os outros lhe fizessem. E também como a Lei de Talião, vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé. Então, a própria tradição bíblica já tem uma indicação de que a reciprocidade tem um papel na interação humana e na interação entre entidades, povos e Estados.

Mas a reciprocidade indica se tratar sempre igual, nas relações internacionais?

Quando você discute o conceito nas relações exteriores, há dois tipos de reciprocidade. Uma por identidade de prestação. É um comportamento igual. Por exemplo, a imunidade diplomática. Eu sou diferente do meu país vizinho, mas eu cumpro essas regras da imunidade, assim como ele as cumpre, ainda que sejamos países diferentes. Mas, existe uma outra reciprocidade que é a equivalência de prestação. É, naturalmente, uma avaliação sobre essa dimensão de equivalência. As negociações comerciais, começando pela redução de tarifas nas sucessivas rodadas do GAAT desde o seu início, não estiveram voltadas para receber reciprocidade da identidade das prestações, mas de uma avaliação da reciprocidade de interesses baseada na equivalência das prestações, proveniente dos benefícios da expansão comercial. Por isso, a diplomacia do comércio internacional é uma diplomacia do concreto. Ela passa por uma discussão das linhas tarifárias. Linha tarifária por linha tarifária. Essa é a minha experiência também como embaixador do Brasil na OMC, que acompanhou também a lógica das negociações comerciais. Não é uma coisa sobre os grandes fluxos. Como, por exemplo, faz o Fundo Monetário Internacional. É claro que a avaliação da equivalência é complexa. Além das tarifas, existem barreiras não comerciais de acesso ao mercado. Existem normas técnicas, por exemplo, sobre alimentos e sobre proteção ambiental. E isso tudo se dá também, hoje, no quadro de uma erosão das normas da OMC. Está surgindo o que pode ser considerado uma geoeconomia, que é o uso de instrumentos de comércio e investimentos internacionais como meio da defesa de interesses nacionais com objetivos geopolíticos.

Quais serão os efeitos disso?

Uma consequência é que ela resulta da exacerbação das tensões internacionais, e da complexidade da governança econômica. Sempre houve a preocupação com segurança, com interesses de meio ambiente, e elas foram contempladas também pelo GAAT, nas exceções gerais e nas exceções de segurança. Mas elas estão hoje em dia muito além do que tinha sido contemplado pelo GAAT. Envolve, por exemplo, temas de novas tecnologias, que é o que nós estamos vendo nesses conflitos entre os Estados Unidos e a China. Envolve o tema de acesso a metais estratégicos, a minérios estratégicos. Envolve preocupações com a segurança dos fornecimentos das cadeias produtivas, como ocorreu na época do covid em matéria de vacinas. Trump exacerba a dimensão da geoeconomia. E isso afeta o Brasil e o mundo todo.

Como o Brasil pode reagir e responder a isso, na prática?

O Brasil não está na primeira linha da mira de Trump. A primeira linha dele foi o México e o Canadá, de maneira surpreendente, pela maneira que ele está tratando dois vizinhos, cujas economias são muito interligadas com os Estados Unidos. Mas o Brasil está sendo alvejado pelo tiroteio de Trump, em especial, no aço e no alumínio. Agora, isso está ao nosso alcance pelo repertório de conhecimentos de que o Brasil dispõe, pelo governo e pelo setor privado. Não só o Itamaraty, mas no Ministério do Desenvolvimento, tem um conhecimento aprofundado sobre as negociações comerciais. Está também ao alcance do setor privado em etanol, alumínio, carne, que podem estar na mira do Trump. (O escritor) Ernest Hemingway dizia que coragem é “grace under pressure”. É manter a dignidade mesmo estando debaixo da pressão. Estamos diante da pressão de atos inamistosos. Nós precisamos calibrar as respostas adequadas que estão ao nosso alcance. Precisamos aferir riscos e oportunidades, inclusive de diversificação de nosso comércio exterior.

O Brasil, então, deverá pensar muito pragmaticamente em como responder a Trump?

Pensar muito pragmaticamente e com o domínio técnico. Precisamos saber o que podemos negociar e o que não dá, o que tem remédio e o que não tem remédio. Não é uma coisa que se coloca no campo da palavra. É uma coisa que se coloca no campo da postura e do conhecimento. Henry Kissinger (político e diplomata americano) dizia que quem não tem estratégia fica prisioneiro dos eventos. Nós, como país, precisamos ter uma estratégia calibradora dos nossos interesses, para não ficarmos prisioneiros dos eventos.

Link da publicação: https://www.estadao.com.br/economia/entrevista-celso-lafer-trump-atitude-especulador-imobiliario-relacoes-diplomaticas/

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

CDPP