Estadão
Horacio Lafer Piva, Pedro Passos e Pedro Wongtschowski
A teoria dos Três Poderes do Estado foi formulada de maneira clara por Montesquieu, em O Espírito das Leis (1748). Segundo ele, o governo seria dividido em três ramos, Legislativo, Executivo e Judiciário. Essa solução evitaria a concentração de poder e garantiria a liberdade e os direitos dos cidadãos.
A Constituição de 1988 consagra para o Brasil tal separação: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário” (art. 2.º). A Carta estabelece mecanismos de fiscalização mútua entre os Poderes, como a possibilidade de o Executivo vetar projetos de lei aprovados pelo Legislativo, a capacidade deste de rejeitar medidas do Executivo e o poder do Judiciário de declarar inconstitucionais leis ou atos do Executivo e do Legislativo.
Mas a prática brasileira não se comporta, há tempos, segundo esses paradigmas.
As evidências estão por toda parte. Vejamos o que acontece com as medidas provisórias (MPs). Entre 2003 e 2018, a maioria das MPs apresentadas pelo Poder Executivo foi aprovada pelo Congresso. Em 2019, 2020 e em 2023, menos MPs foram aprovadas do que as que caducaram. Nos últimos dois anos, ou seja, nos primeiros anos de Lula 3, das 133 MPs encaminhadas pelo presidente da República, apenas 20 foram aprovadas.
Algo semelhante ocorre com os vetos presidenciais. Como sabido, para derrubar um veto presidencial a uma lei aprovada pelo Congresso, é necessário o voto da maioria absoluta dos deputados e senadores, ou seja, 257 votos de deputados e 41 dos senadores, computados separadamente. Entre 1994 e 2018, em média, em cada ano foi derrubado 1,08 veto presidencial. Entre 2019 e 2024, em média, em cada ano foram derrubados 11,67 vetos presidenciais. Ora, num governo de coalizão, como tivemos neste último período, supõe-se que o presidente tenha o apoio da maioria dos congressistas.
Há, ainda, outros indícios de que os congressistas dominam, de fato, grande parte dos órgãos do Poder Executivo. Faz parte da construção de um governo de coalizão que partidos políticos indiquem nomes para compor o primeiro escalão deste Poder. Ministérios são cargos políticos, e como tal os seus titulares se comportam. Mas a hipótese é de que, uma vez que passem a fazer parte do Executivo, responsabilizem-se, em suas áreas de atuação, por apoiar as políticas definidas pelo presidente da República. Veja-se o que diz a mídia sobre, por exemplo, a Caixa Econômica Federal. A presidência é ocupada por um indicado de Arthur Lira (Carlos Vieira), que afirma que “a dinâmica da política faz parte de um ambiente em que a Caixa está inserida”. Mais ainda, as 12 vice-presidências da Caixa são divididas entre os partidos do bloco até há pouco liderado por Arthur Lira. Ou seja, de fato, a Caixa deixa de estar subordinada ao Poder Executivo e passa a ter as suas políticas e diretrizes definidas pelo Legislativo.
Causou espanto que a festa de São João de 2024 no município de Patos (PB) tenha sido patrocinada pela Infraero. Esta deficitária empresa estatal não opera no Estado da Paraíba, mas o seu presidente, Rogério Barzellay, foi indicado por Hugo Motta, cujo principal reduto eleitoral é, justamente, Patos. Ou seja, os indicados políticos para cargos do Poder Executivo estão a serviço de seus mentores, e não de seus chefes ou mesmo das empresas que dirigem.
Contudo, provavelmente não existe evidência mais contundente do Poder Legislativo ocupar espaço do Executivo do que as chamadas emendas parlamentares. Os deputados e senadores destinaram, a seu bel prazer, R$ 47,87 bilhões em 2024, e pretendem aplicar R$ 52,07 bilhões em 2025. Isso representa cerca de 23% da parte discricionária do Orçamento público federal.
Do outro lado, o Poder Judiciário ocupa, de maneira crescente, espaços que são de outros Poderes. Por exemplo, será que definir 40g de maconha (ou seis plantas fêmeas) como limite para distinguir um usuário de um traficante é seu papel? Foi também o Supremo Tribunal Federal (STF) que determinou o teto para a cobrança de serviços funerários pelo órgão responsável no município de São Paulo. É, ainda, o STF que estabelece quando e de que forma os policiais militares devem gravar suas operações nas câmeras corporais.
A redução do poder efetivo do Executivo é tão ruim para a democracia quanto para a eficiência governamental. A expectativa do eleitor quando escolhe um membro deste Poder é que ele responda pelas ações do governo; tal não acontecendo, o eleitor – com razão – passa a duvidar da importância de seu voto. É evidente que a falta de unidade no comando da máquina pública federal compromete a eficiência do governo e mina o seu poder de ação e a sua credibilidade. A expectativa de todos é que o STF se pronuncie sobre a propriedade das leis e que interprete a Constituição; não que legisle.
Urge, portanto, para permitir que o País seja administrável, que entre tantas necessidades, se volte ao básico: o Executivo executa, o Legislativo legisla e o Judiciário julga. Simples assim.
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