Na avaliação do pesquisador associado do FGV/Ibre, Trump se isolou com sua política tarifária e ‘democracia americana produziu uma equipe econômica que parece amadora’
Estadão
Pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV/Ibre), Samuel Pessôa avalia que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, se isolou com a sua política tarifária. Pessôa classifica a medida trumpista como “antiquada” e diz que “a democracia americana produziu uma equipe econômica que parece amadora”.
“O uso de tarifa como instrumento de arrecadação de receita pública é uma coisa bem antiquada. E, adicionalmente, o mais importante de tudo isso é que essa roda não gira para trás”, afirma.
“Estamos falando de progresso tecnológico, não é de comércio. Tudo bem, perdeu-se muito emprego para a China. Mas esses empregos na China viraram empregos de robô. Se der tudo certo, os robôs vão voltar para os Estados Unidos, mas que vantagem Maria leva?”, acrescenta.
Na quarta-feira, 9, diante do colapso do mercado global, Trump anunciou a interrupção da implementação de suas tarifas recíprocas pelos próximos 90 dias, mas aumentou o imposto sobre as importações chinesas para 125%.
Pessôa enxerga, porém, a possibilidade de um efeito colateral positivo nessa medida “meio desastrada”: que isso acabe forçando a China a investir mais em medidas de bem-estar social, para estimular o consumo doméstico que possa absorver uma produção industrial que tenha mais dificuldade de entrar em outros países.
A seguir trechos da entrevista concedida ao Estadão.
Como o sr. avalia a decisão do governo dos EUA de aumentar a taxação sobre produtos da China para 145% e o anúncio de uma pausa de 90 dias nas tarifas recíprocas, reduzindo-as para 10%?
A impressão que dá é que o Trump percebeu que estava ficando isolado ao colocar tarifa contra todo mundo. O problema maior dele é com a China. A China tem o maior superávit (com os Estados Unidos) e uma taxa de poupança excessivamente alta. As questões dele são mais com a China. Precisamos esperar. Essas coisas acontecem num dia; outro dia acontece alguma coisa diferente. É um pouco difícil ter uma avaliação mais segura, mas esse movimento se aproxima da estratégia do primeiro mandato, de uma disputa direta com a China. Disputando menos em outros lugares e concentrando suas diferenças e suas disputas com a China.
É exagerado dizer que é o fim da ‘era da globalização’?
Não é exagerado. Pode ser que sim, mas eu acho que ainda é cedo para cravarmos isso. O mundo já se globalizou e desglobalizou em outras oportunidades. Esses ciclos ocorrem. A outra vez que esse ciclo ocorreu coincidiu com o momento em que o país líder da globalização estava sendo contestado por outras lideranças, outras potências. Houve a primeira globalização que vai da década de 1840 até a Primeira Guerra Mundial, que é a globalização liderada pela Inglaterra. Chamamos de Pax Britannica. O Reino Unido era o grande líder, a fábrica do mundo. Exercia o poder de polícia e a moeda internacional era a libra.
Esse grande período de globalização terminou com a Primeira Guerra Mundial. Foi um período em que a Alemanha emergia como uma potência importante, os Estados Unidos estavam crescendo muito. A guerra gerou um período conturbado de 30 anos, quase 40 anos, com duas guerras mundiais e, no meio delas, uma Grande Depressão. Nesse período todo, o comércio mundial caiu muito. Só voltamos a ter um nível de comércio mundial equivalente ao de 1913, 1914 na virada da década de 1970 para a década de 1980. Demorou um tempo para o comércio internacional voltar aos picos pré-Primeira Guerra Mundial. Ou seja, esses fenômenos já ocorreram no passado e podem ocorrer agora, mas ainda é cedo para a gente cravar.
Se o cenário se confirmar e o cenário global piorar, quais podem ser os impactos para o Brasil?
O Brasil vai sofrer como todo mundo, principalmente havendo uma desorganização da produção. Mas o Brasil deve ser um dos países que menos vão sofrer. Se pegarmos a história do século XX, é um século com tragédias. Foram duas guerras mundiais e uma grande depressão. Esses episódios foram muito difíceis para nós, mas sofremos menos do que a média do mundo. Eu acho que a situação vai se repetir agora. Estamos mais ou menos longe de tudo, escolhemos ficarmos apartado das cadeias globais de valor. Tirando a Embraer, não temos mais grandes empresas brasileiras que estão conectadas com as cadeias globais de valor.
Por conta dessa decisão de nos mantermos fechados e apartados das cadeias globais de valor, nós pagamos um preço permanentemente muito alto na forma de menor produtividade e redução do bem-estar da sociedade. Mas, dado isso, agora, com todo esse choque, estamos relativamente protegidos. A nossa vida vai piorar, porque a vida do mundo todo vai piorar, mas nós seremos menos afetados do que a média.
Muitos analistas têm dito que as políticas do Trump parecem ser antiquadas e que essa ideia dele de reindustrializar os Estados Unidos e trazer mais empregos e investimentos não vai acontecer. O sr. também acredita que essa política tarifária não vai ter o resultado que ele espera?
Eu acho que não vai ter. De fato, é tudo muito antiquado. A tarifa é uma coisa do século XIX. O uso de tarifa como instrumento de arrecadação de receita pública é uma coisa bem antiquada. E, adicionalmente, o mais importante de tudo isso é que essa roda não gira para trás. Estamos falando de progresso tecnológico, não é de comércio. Tudo bem, perdeu-se muito emprego para a China. Mas esses empregos na China viraram hoje empregos de robô. Se der tudo certo, os robôs vão voltar para os Estados Unidos, mas que vantagem Maria leva?
A desindustrialização nos EUA ocorre porque eles se especializaram nas atividades mais sofisticadas do capitalismo moderno. Eles têm todo o Vale do Silício. A fronteira inovadora do mundo está nos EUA, não na Europa. A China, agora, está, em alguns setores, contestando a liderança americana, mas nesse campo, na indústria de tecnologia de informação, nos serviços sofisticados, os Estados Unidos têm uma vantagem imensa que vem do Vale do Silício.
Como os Estados Unidos são muito produtivos e eficientes nesses setores mais modernos e dinâmicos da economia mundial, a indústria foi para outros lugares. Ou seja, o que eu estou querendo dizer é que quem compete com a indústria americana não é a indústria chinesa. Quem compete com a indústria americana é o Vale do Silício. A economia americana está a plena carga. Os engenheiros, em vez de estarem trabalhando na indústria americana, estão no Vale do Silício. Eu vou querer que eles deixem de ser engenheiros do Vale do Silício e voltem para o chão de fábrica? É uma atividade com produtividade menor, valor adicionado menor. Hoje, a parte mais nobre da indústria está na construção de marcas e patentes. Essa está toda nos Estados Unidos. O que saiu dos EUA é a parte menos nobre. É um sonho de voltar a uma América dos anos 1950, que não vai acontecer porque o mundo mudou.
Há um debate de que a China pode inundar o mercado com seus produtos. Se isso ocorrer, não pode acabar criando mais uma guerra comercial, porque outros países vão querer adotar tarifas?
Pode. Nessa pergunta, está o único ponto que, talvez, traga algum fundamento para a política adotada pelo Trump. É uma política meio desastrada, mas, talvez, tenha um efeito colateral positivo. Qual é? A absorção chinesa é muito baixa. A China é um país rico e já ultrapassou o Brasil em renda per capita, mas o consumo do cidadão chinês é muito baixo. O consumo per capita em dólares constantes de um cidadão chinês médio é menor do que de um cidadão brasileiro.
Por que é menor?
O chinês poupa loucamente, porque a China não tem o welfare state (Estado de bem-estar social). Pegue as rubricas como gastos com saúde, educação, aposentadoria, Bolsa Família. Esse pacote dá em torno de 20% do PIB para o Brasil. Se fizer essa conta para a China, vai dar uns 7% ou 8% do PIB. A China tem um Estado que gasta muito pouco em seguridade social, saúde e educação. Isso gera, portanto, esse Estado muito avarento, uma percepção de insegurança muito grande do cidadão chinês e produz uma poupança excessiva.
Os Estados Unidos estão pondo uma barreira imensa. Então, eles não estão querendo absorver o excesso de produção industrial que a China tem. Se eles (EUA) não absorverem esse excedente produtivo de manufatura que a China tem, ela vai tentar colocar no resto do mundo. E aí pode gerar problemas. O resto do mundo pode colocar barreiras comerciais a essa manufatura chinesa. E aí, talvez, eles (chineses) sejam obrigados a tomar medidas para que a taxa de consumo aumente, para que a taxa de poupança caia.
Quais são as medidas?
Precisam aumentar o gasto social. Eles têm de reduzir a percepção de insegurança com perda de emprego, com problemas de saúde, com aposentadoria, ou seja, perda de capacidade laboral com o envelhecimento e, assim, sucessivamente. O Estado chinês precisa de medidas que reduzam a percepção de risco ligada a esses fenômenos que o cidadão chinês médio sente para que você estimule que ele consuma mais.
Os Estados Unidos importam muito. Até onde os Estados Unidos conseguem se isolar?
Não sei. Para se isolar, eles precisam aumentar a poupança doméstica. É o contrário da China. E para aumentar a poupança doméstica, é preciso aumentar a poupança pública. Então, o gasto público tem de cair, e ter medidas para que as famílias poupem mais. Eu não sei se essas medidas serão tomadas.
Mas a prova do pudim é que, para o programa do Trump ser consistente, é necessário que essas medidas que estão sendo tomadas, no frigir dos ovos, produzam o aumento da poupança americana e uma redução da poupança chinesa. Eu fico com dificuldade de ver como a tarifa vai produzir esses efeitos.
Mas se produzir, aí a coisa tem uma consistência, um custo imenso, uma perda de eficiência da economia mundial, uma perda de crescimento econômico e de bem-estar, mas produz um certo rebalanceamento dos desequilíbrios externos entre China e Estados Unidos.
Nos últimos dias, nós vimos investidores se desfazendo de títulos norte-americanos. Os EUA deixaram de ser o porto seguro da economia global?
Ser o porto seguro global significa ter instituições sólidas, previsibilidade e racionalidade na condução da política macroeconômica. A democracia americana produziu uma equipe econômica que parece amadora. É estranho que uma sociedade da sofisticação da americana, que tem as melhores universidades do mundo, com uma renda per capita altíssima, eleja uma pessoa que constitui uma equipe econômica que promova aquela medida que a gente viu no 2 de abril. Aquela medida é amadora. É, de fato, uma coisa de República bananeira. É estranho. Eu acho que essa ação ruidosa vai minando as características institucionais que uma economia tem de ter para ser o porto seguro.
Mesmo os ataques que o Trump tem feito à institucionalidade americana, o fato de governar muito em cima de ordens executivas e numa zona cinzenta, em que você não sabe se ele tem espaço legal para tomar aquelas atitudes ou não, gerando conflito permanente com a Suprema Corte, não é o funcionamento da economia que é o porto seguro do mundo.
Link da publicação: https://www.estadao.com.br/economia/politica-tarifaria-trump-efeito-colateral-entrevista/
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