Globo
Arminio Fraga, Paulo ChapChap, Rebeca Freitas, Rudi Rocha e Arthur Aguillar
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) anunciou em fevereiro a proposta de criar um ambiente regulatório experimental (ou “sandbox” regulatório) para testar planos de saúde com cobertura restrita a consultas eletivas e exames simples. Planos que não cobrem urgência e emergência, internações nem terapias, incluindo psicoterapias e as oncológicas, dentre outras. Argumentos técnicos e jurídicos apontam para a ilegalidade da proposta e foram elencados de forma exaustiva na ação civil pública movida pelo Instituto de Defesa do Consumidor (Idec). Além disso, a proposta não reflete adoção inovadora de tecnologia como preconiza a Advocacia-Geral da União (AGU) para justificar esse tipo de teste regulatório. Em face desses questionamentos, é necessário explicitar alguns dos possíveis efeitos na vida dos cidadãos e para o SUS, caso esses planos passem a ser ofertados.
O principal argumento da ANS é a ampliação do acesso à saúde suplementar a partir da criação de um produto mais barato, que possibilitaria diagnósticos antecipados. Contudo o usuário que saiu da atenção primária do SUS para obter seu diagnóstico no setor privado precisará retornar ao sistema público para fazer uma cirurgia, uma hemodiálise ou uma fisioterapia. Nos casos de câncer, o diagnóstico nem sequer será concluído, pois não há cobertura para biópsia. De qualquer forma, o paciente carecerá de atendimento em momento de grande necessidade.
Ao retornar ao SUS, esse paciente, que pôde pagar pelo plano de saúde minimalista, repetirá toda a jornada de consultas e exames por que passou no setor privado até conseguir seu diagnóstico, perdendo o tempo em que poderia já estar em tratamento? Ou será encaminhado diretamente a um especialista que possa dar início ao tratamento, passando na frente dos que não têm condição de pagar por um plano e aguardam consultas e exames que levem ao diagnóstico?
Na primeira alternativa, o usuário perde ainda mais tempo até o início do tratamento. A segunda fere frontalmente o princípio da equidade do SUS. E pode levar ao endividamento das famílias em momento de extrema vulnerabilidade, a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos, onde há planos de saúde com características similares aos simplificados. Para os usuários que dependem exclusivamente do SUS, o resultado pode ser uma espera ainda maior por um tratamento que pode custar sua vida. Ambas as alternativas afetam a integralidade da atenção à saúde, princípio do SUS que deve garantir a assistência à saúde para além da prática curativa.
Por fim, na perspectiva dos consumidores de planos empresariais, que representam mais de 70% dos que têm plano de saúde no país, o risco é que tal mudança incentive as empresas contratantes a substituir planos de maior cobertura pelos minimalistas. Se num plano de saúde todos de um grupo contribuem para um fundo comum, e esse dinheiro é usado para ajudar quem precisa de cuidados, por que a cobertura de eventos extremos deveria ficar de fora?
Considerando o retrocesso dos mecanismos de seguro no país, diagnosticado por pesquisa do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) lançada em 2024, e a simbiose entre os setores privado e público, quaisquer mudanças regulatórias aplicadas ao mercado de operadoras de planos de saúde que tenham potencial de afetar o SUS e seus usuários devem ser rigorosamente avaliadas e discutidas. Para além da ilegalidade do teste regulatório, a proposta da ANS pode desestruturar o mercado de seguros de saúde no Brasil, comprometer princípios fundamentais do SUS e colocar em risco a vida e o bem-estar de milhões de brasileiros.
Link da publicação: https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2025/04/planos-simplificados-impactam-a-saude-publica.ghtml
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