Estadão
O economista Armínio Fraga enxerga o Brasil em um jogo de tabuleiro: “Anda para a frente, mas de vez em quando volta algumas casas para trás”. Por isso, vê com preocupação o futuro do País, apesar dos avanços na economia das últimas décadas, com a superação da hiperinflação e vitórias sobre as crises bancária e cambial.
A questão, diz, é que há um “problema mais sério” e que se reflete na curva de juros de longo prazo: “Esses juros estão altos não apenas em função de uma questão cíclica, de a inflação estar acima da meta, mas por um problema mais sério, de natureza fiscal”, diz.
Para Armínio, não existem atalhos para o desenvolvimento do País, que terá de superar também o fim do bônus demográfico, quando a população brasileira tinha mais jovens entrando no mercado de trabalho do que idosos se aproximando da aposentadoria.
“O bônus foi um período em que o peso dos aposentados era relativamente leve, ou seja, onde sobrava mais para investir. Agora, teremos de ampliar a produtividade com esforços em várias frentes: educação, saúde, segurança, tecnologia, inovação, mais investimento.”
Veja abaixo os principais trechos da entrevista:
O Brasil avançou na economia, nas últimas décadas, principalmente depois da redemocratização, mas continua com crescimento baixo e preso a uma crise fiscal. Por quê?
Apesar das vitórias contra a moratória da dívida e a hiperinflação, nos anos 90, o Brasil seguiu tendo crises periodicamente. Como num jogo de tabuleiro, a gente anda pra frente, mas de vez em quando tem de voltar algumas casas para trás. Olhando o PIB per capita, acho que andamos umas dez casas para trás no governo Dilma Rousseff (2011-2016). E isso, quando você soma, dá um prejuízo muito grande. O Brasil continua sendo um país de poupança e investimento baixos, uma economia ainda bastante fechada. Muitas reformas foram aprovadas, atacando vários problemas, mas, ao mesmo tempo, volta e meia a gente retrocede.
Quais foram as casas para a frente?
Eu começaria com o marco relevante que foi o Plano Real, mas já dava para enxergar algumas coisas antes. O governo Collor foi desastrado, a inflação atingiu seu nível máximo, mas houve avanços com as privatizações e a abertura comercial. Com o Plano Real, vários problemas apareceram, que estavam escondidos sob a névoa da inflação. Ficou claro que havia um problema fiscal, que era resolvido na boca do caixa. Havia um sistema financeiro acostumado a ganhar dinheiro como uma espécie de parasita da inflação. Isso ficou claro com as crises bancária e cambial. Com o tripé macroeconômico (meta de inflação, câmbio flutuante e meta de superávit primário), o assunto foi resolvido. Depois, eu daria grande importância à chegada do PT ao poder, que foi uma surpresa, porque havia um receio de que o partido fosse colocar em prática as suas ideias históricas, coisa que o Lula optou por não fazer. Depois, no governo Temer (2016-2019), mais um ciclo de reformas importantes. E, no governo Bolsonaro (2019-2022), algumas também.
E as casas para trás?
Aos poucos, o governo do PT foi saindo dos trilhos, com uma certa nostalgia, inclusive com aspectos econômicos da ditadura. A mão mais pesada do Estado, intervencionismo enorme, presença estatal no mercado de crédito. Isso levou a um desgaste e, com o colapso fiscal do governo Dilma, houve uma segunda grande crise (depois da crise dos anos 80), com queda per capita semelhante à da década perdida, e muito mais rápida. Em três anos, a renda per capita caiu tanto quanto caiu na década perdida. Desde então, tem sido um vai e vem de ideias.
Hoje, o que pesa mais sobre a economia?
O Brasil tem um problema muito sério no seu Orçamento e que precisa ser visto por dois ângulos diferentes: de um lado, o crescimento exponencial da dívida, agora com jogos contábeis. Mas há também um problema sério de prioridade do gasto público. Não me canso de dizer que 80% do gasto vai para Previdência e folhas de pagamentos do Estado, principalmente de Estados e municípios. Os gastos tributários saíram de 2% do PIB, em 2002, para 7% do PIB hoje. Temos uma situação econômica em que o BC precisa de ajuda da área fiscal, mas não tem recebido, a despeito do esforço do ministro (Fernando) Haddad e da sua equipe. O arcabouço fiscal já nasceu insuficiente e a execução está difícil. São dois grandes blocos. Um é a dinâmica da dívida e taxa de juros, e outro é o que diz respeito às prioridades do Estado.
Desde 2016, o Brasil aprovou as reformas da Previdência, trabalhista, concedeu independência ao Banco Central e agora aprovou a reforma tributária. Por que tudo isso é insuficiente?
Não dá para deixar de dar peso à pandemia. Passada a pandemia, houve alguma recuperação e algum crescimento, mas ainda frágil, porque não teve muito investimento. Foi mais uma recuperação, o desemprego estava alto no início, vem caindo, o subemprego também caiu. Mas não acontece de uma forma tal que o País consiga sustentar esses 3% de crescimento do PIB, dos últimos 30 meses, por muito tempo.
A pandemia tirou produtividade?
A pandemia paralisou a economia. Com isso, a taxa de crescimento médio recente ficou muito prejudicada. Os juros, que chegaram a bater em 2%, agora estão acima de 14%. E agora, há um aspecto muito importante: esses juros estão altos não apenas em função de uma questão cíclica, de a inflação estar acima da meta, mas por um problema maior. O Brasil paga IPCA mais 7% ou mais para todos os prazos de vencimento dos títulos públicos, chegando a mais do que 30 anos.
Por que isso acontece?
Lá atrás, quando o teto de gastos foi aprovado, foi possível jogar as taxas de juros a um nível lá para baixo. E as de longo prazo também caíram. Lembra que o Banco Central controla os juros de curto prazo, mas os de longo prazo, não. Na medida em que esse esforço fiscal foi se esfarelando, e o Brasil seguiu com déficit primário, as taxas voltaram a subir. Essas taxas sugerem que é um problema mais sério, da natureza fiscal.
A LDO que o governo enviou em abril demonstra um arcabouço em colapso. Qual será a agenda do governo na economia em 2027?
É a agenda que devia ser discutida hoje. O Brasil não pode esperar o calendário político. Eu defendi uma proposta que não seria a ideal, mas daria um sinal forte na direção de resolver essa questão fiscal. Falei do salário mínimo, um tema altamente polêmico, e é claro que não dá para pensar em reduzir o salário mínimo em termos reais, mas como ele está vinculado a muita coisa, um período sem queda real, mas também sem crescimento, faria sentido. A regra do salário mínimo reza que ele só cresça. Enquanto a produtividade está crescendo, tudo bem, é compartilhar ganhos. Mas em períodos de muita queda e no momento em que essas vinculações todas existem, me parece que é uma ideia que poderia fazer parte de uma resposta. Mas é fundamental também incluir uma discussão sobre o gasto tributário, de cortar pelo menos dois pontos do PIB dessa despesa.
O governo limitou o salário mínimo ao teto de 2,5%, isso é insuficiente? Já cogitaram reajustar pelo PIB per capita.
O PIB per capita seria melhor, e poderia ser também uma média móvel de cinco anos. Seria uma forma de atenuar, caso tivesse queda no PIB no período. Porque hoje o salário mínimo só sobe. E acho que tem de ter um olhar para o lado microeconômico também. O corte dos gastos tributários seria cortar elementos altamente regressivos (que beneficiam os mais ricos).
As eleições de 2026 estão se aproximando. Como o senhor vê a possibilidade de aparecer um candidato da chamada ‘terceira via’?
Eu achava que tinha (essa condição) nas eleições anteriores. Agora as lideranças parecem estar cansadas, não estão no auge da sua energia.
O sr. quer dizer Lula e Bolsonaro?
Sim. Talvez de fato surja esta janela, e espero que ela seja utilizada para debater o que realmente importa. Hoje, o Brasil está olhando uma estrada de mil quilômetros à frente, toda esburacada, e está sem pneu estepe. Com essa dívida que a gente tem, não é bom. Hoje não daria para fazer, por exemplo, o que foi feito na pandemia. De aumentar gastos em 20 pontos porcentuais do PIB. Em tempos normais, a dívida precisa ficar em níveis confortáveis, e hoje estamos muito fora do confortável. Com juros altos e déficit primário, cria-se um círculo financeiro vicioso, que é como entrar no cheque especial: uma hora vai quebrar.
Como o sr. o enxerga o Brasil daqui a algumas décadas?
Espero que melhor, mas vai dar trabalho. Precisamos aprender com as lições do passado, tanto de erros, quanto de acertos, e levar esse aprendizado em conta na prática. O fato é que não existem atalhos para o desenvolvimento, temos de encarar essa realidade.
O bônus demográfico está passando, se já não passou. Como ampliar a produtividade com menos jovens entrando no mercado de trabalho?
O bônus foi um período em que o peso dos aposentados era relativamente leve, ou seja, onde sobrava mais para investir. Agora, teremos de ampliar a produtividade com esforços em várias frentes: educação, saúde, segurança, tecnologia, inovação, mais investimento.
O sr. enxerga o Brasil como um País desenvolvido em algum momento? Ou ficaremos sempre na promessa de país do futuro?
Nos últimos 44 anos crescemos (por pessoa) menos do que os Estados Unidos. Logo, existe muito espaço para melhorar. Mas temos de melhorar.
Este vai ser o século da China?
Já está sendo. A China saiu da pobreza extrema, gerou muita riqueza e se educou. É uma história sensacional, começou com Deng Xiaoping (1904-1997), que foi o começo da virada, com o abandono do modelo do Mao Tsé-Tung (1893-1976). Então, sim. Tanto a China quanto os EUA se beneficiaram muito dentro dessa ordem global. A China foi incorporada à OMC (Organização Mundial do Comércio), foram momentos dramáticos da história econômica da nossa era. É curioso os EUA, que foram talvez o maior beneficiário, junto com a China, estarem se voltando contra isso.
O que significa este início de governo Trump? Há uma mudança na principal economia do mundo?
Estamos vendo algo nunca visto. Os americanos foram os pais do sistema de pesos e contrapesos entre os Poderes, e agora há situações de o Executivo não respeitar algumas decisões do Judiciário. Vejo com muita apreensão. No comércio internacional e nas relações internacionais, estamos vendo a volta do Estado-Nação. O protecionismo havia sido mais ou menos superado no século 18 com Adam Smith (1723-1790) e no século 19 com David Ricardo (1772-1823). O pós-guerra foi um período de muita prosperidade para os americanos e tinha como uma de suas âncoras a globalização.
Qual o risco para os americanos e para o mundo?
Hoje há nos EUA problemas muito sérios. Primeiro, a perda do soft power, que é poder do exemplo, das vantagens do modelo democrático, liberal, solidário. Os EUA põem em risco a sua extraordinária produtividade, que é a mola mestra do crescimento, em última instância. E por último estão arriscando perder a condição do dólar de moeda de reserva, que é extremamente vantajosa. Esse caos que estamos vivendo no governo Trump pode custar muito caro para os EUA e para o resto do mundo. Até hoje, os países que se desenvolveram mais plenamente seguiram o modelo ocidental. Se o mundo perder essa estrela-guia, a coisa pode ficar bem complicada.
Link da publicação: https://www.estadao.com.br/150-anos/economia-em-transformacao/arminio-ve-brasil-num-jogo-de-tabuleiro-anda-para-frente-mas-volta-casas-atras/
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