Para especialistas, soluções incluem nova reforma da Previdência e desvinculação de gastos
Valor
A situação fiscal do Brasil limita o crescimento econômico, deixa o país vulnerável a choques e dificulta o acesso a políticas públicas entre aqueles que mais precisam delas. Para colocar as contas novamente em uma trajetória sustentável e garantir os serviços públicos essenciais na ponta, é preciso diminuir o ritmo de crescimento das despesas obrigatórias. Há um cardápio de medidas que vão desde uma nova reforma da previdência até a desvinculação de gastos, mas a solução também passa por Legislativo e Judiciário assumirem as consequências dos desequilíbrios fiscais. As avaliações são de quatro especialistas ouvidos para a edição de 25 anos do Valor: Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central (BC) e sócio fundador da Gávea Investimentos; Bráulio Borges, economista-sênior da LCA 4intelligence e pesquisador-associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre); Elena Landau, ex-diretora do BNDES no governo Fernando Henrique Cardoso, economista, advogada e consultora do Bermudes Advogados; Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper.
A gravidade da situação fica clara principalmente por meio do principal indicador do estoque do endividamento público, a dívida bruta do governo geral (DBGG), que encerrou fevereiro em 76,2% do Produto Interno Bruto (PIB). Com algumas variações pontuais, a DBGG vem a grosso modo crescendo há mais de uma década e se distanciando da média dos países emergentes. O movimento empurra para cima os juros pagos pelo Brasil para se financiar e, consequentemente, limita o crescimento econômico.
“O governo é de longe o maior devedor da economia, e essa demanda por crédito pressiona os juros, caracterizando um círculo vicioso que precisa ser interrompido”, diz Arminio.
Embora as estimativas para o tamanho do ajuste necessário variem e maiores impactos fiscais imediatos não sejam factíveis, os especialistas consideram que sinalizações concretas de compromisso com o equilíbrio das contas públicas já tornariam o ambiente econômico mais favorável.
“É possível melhorar as expectativas não necessariamente fazendo todo o ajuste, mas estando no caminho correto, com políticas consistentes e mostrando que será possível fazer todo esse ajuste daqui a 5 ou 6 anos. Isso já melhoraria muito as condições de solvência”, diz Mendes.
Até lá, no entanto, o crescimento econômico será menor, o país continuará vulnerável a choques e as políticas públicas serão prejudicadas.
“Tudo isso só vai comprimir as despesas discricionárias [aquelas que podem ser cortadas mais livremente, como investimentos e custeio], principalmente no caso de investimentos mais estruturantes”, diz Borges, lembrando por exemplo que a Farmácia Popular é uma despesa discricionária, ou seja, passível de cortes.
“Não conseguimos ter um Estado eficiente, com alocação de recursos que justifique para a sociedade o tamanho da carga tributária”, afirma também Elena.
Qual a gravidade da situação atual das contas públicas e qual o impacto disso sobre os juros reais e o crescimento do país?
Arminio Fraga: A dívida pública se aproxima dos 80% do PIB. Como o saldo primário exibe um déficit, o governo está tomando dinheiro emprestado para pagar juros. A taxa de juros que o governo paga em sua dívida está acima de 7% [ao ano], bem acima da taxa média de crescimento da economia nas últimas décadas, que anda por volta de 2,5%. Com isso, a dívida vai seguir crescendo como proporção do PIB. O governo é de longe o maior devedor da economia, e essa demanda por crédito pressiona os juros, caracterizando um círculo vicioso que precisa ser interrompido. O Brasil está bastante vulnerável. Por exemplo, seria difícil repetir hoje o aumento de gastos emergencial, de 20% do PIB, que permitiu a resposta à pandemia.
Bráulio Borges: A gente está com uma dívida pública que sobe praticamente sem parar desde 2015. Ela está muito alta, se a ideia é retomar o grau de investimento e trazer de volta o estrangeiro para ajudar a financiar o nosso déficit, para reduzir os juros aqui dentro. Parece que o Congresso não tem noção da severidade da situação, nem o Executivo. Essa história da isenção do Imposto de Renda [para pessoas físicas que ganham até R$ 5 mil mensais] é um exemplo. Concordo com metade do projeto, a parte de taxar os mais ricos. Só que esses recursos deveriam ser usados para aumentar o superávit primário e não para isentar do Imposto de Renda quem ganha até R$ 5 mil ou diminuir a cobrança de quem ganha até R$ 7 mil, que não é uma pessoa pobre no Brasil. Além disso, quando o governo anunciou o arcabouço fiscal no começo de 2023, tinha a meta de gerar o superávit primário de 1% do PIB em 2026. Mas em abril do ano passado empurrou isso para o próximo governo. O próprio Executivo parece que não tem o senso de urgência necessário.
Elena Landau: A gravidade da situação fiscal não pode ser avaliada pelo arcabouço ou pelos gastos primários, mas pelo crescimento da dívida pública. Tudo indica que essa dívida vai continuar crescendo. O Brasil também não se prepara para as mudanças que não são mais do futuro, mas atuais, como o envelhecimento da população e as mudanças climáticas. A situação é grave.
Marcos Mendes: Quando a gente fala de gravidade, suscita a ideia de emergência, de uma crise para amanhã. Não é o caso. Pode haver alguma crise, se as condições internacionais se deteriorarem ou acontecer algum choque inesperado. Quando uma economia tem um desequilíbrio fiscal do tamanho do brasileiro, fica mais suscetível a crises. Se houver outra tragédia como a do Rio Grande do Sul, você não tem fundos para dar uma resposta. Vai ter que se endividar, agravando a situação. O problema é muito mais de [afetar a] capacidade de crescimento no médio e no longo prazos, de tirar o Brasil de uma situação de renda média, com baixos salários, alta informalidade. Não conseguimos colocar o país em uma rota de crescimento que nos faça convergir para a renda dos países mais ricos. Nos últimos 40 anos, a nossa distância em relação aos Estados Unidos aumentou, quando o ideal seria diminuir.
Despesas obrigatórias respondem por mais de 90% do Orçamento, e as emendas parlamentares abocanham parte cada vez mais significativa dos gastos discricionários. Quais as consequências dessa rigidez orçamentária?
Arminio: Em primeiro lugar, dificulta enormemente o ajuste fiscal necessário para colocar a dívida pública em queda. Digo “em queda”, de forma que o Estado recupere a sua capacidade de reagir a emergências. Dificulta também repensar as prioridades do gasto público, o que é uma necessidade. As emendas abocanham cerca de 0,5% do PIB, um nível nada desprezível. Tanto quanto seu tamanho, incomoda a falta de transparência quanto ao destino desses gastos.
Bráulio Borges: Tudo isso só vai comprimir a despesa discricionária, principalmente no caso de investimentos mais estruturantes, já que os investimentos das emendas são muito pulverizados. A Farmácia Popular é uma despesa discricionária. O governo federal aumentou um pouco os investimentos nos últimos anos, mas ainda é um nível muito baixo.
Elena Landau: Não conseguimos ter um Estado eficiente, com alocação de recursos que justifique para a sociedade o tamanho da carga tributária. As emendas não têm transparência. Além disso, parte dessa rigidez enorme foi criada pelo próprio arcabouço fiscal, que fez a indexação de saúde e educação, e pelo governo Lula, que deu aumentos reais para o salário mínimo. O Congresso deveria ser atuante no planejamento. Mas o processo não tem nenhuma transparência, as comissões não estão atuando, quase tudo tem [tramitação] com regime de urgência. Não há controle sobre a qualidade do gasto.
Marcos Mendes: Essa rigidez não vem do nada, vem de um modelo político-institucional em que vários setores da sociedade tiveram capacidade política de se organizar e pegar um pedaço do Orçamento para si. Com a redemocratização, os políticos perceberam rapidamente que teriam que atender a grande massa da população de baixa renda, e os programas sociais explodiram. Isso tem um apelo eleitoral muito forte: a política do salário mínimo, a indexação das aposentadorias ao salário mínimo, a dificuldade de adaptar a aposentadoria às mudanças demográficas. Por outro lado, há grupos econômicos que conseguem grandes benefícios tributários, a classe média consegue coisas como universidade gratuita e por aí vai. Antes o Executivo tinha condições de impor uma agenda. [Não conseguir mais impor a agenda] dificulta muito o equilíbrio fiscal, porque o Executivo tem algum incentivo para fazer ajuste, já que [as consequência do desequilíbrio] caem na conta política do presidente e do ministro da Fazenda. Mas o Legislativo não tem esse incentivo porque, individualmente, cada parlamentar não é responsabilizado pelo ajuste fiscal.
Quais as três principais medidas necessárias para enfrentar o nó fiscal e reduzir a incerteza sobre as contas públicas brasileiras?
Arminio Fraga: São as que abordam temas grandes. Uma nova reforma da previdência, que exibe um déficit elevado e que tende a piorar. Em segundo lugar, uma redução dos gastos tributários, que subiram de cerca de 2% do PIB no fim do governo de FHC para mais do que 7% do PIB hoje. Boa parte desses gastos tem caráter regressivo, ou seja, representam subsídios aos mais ricos, um absurdo tendo em vista a desigualdade do Brasil. Finalmente, uma reforma do RH do Estado. Tal reforma contribuiria para uma maior eficiência do Estado e, com o tempo, para uma redução em sua folha de pagamentos – um desafio para os três níveis do governo.
Bráulio Borges: A regra de reajuste do salário mínimo é insustentável. O governo aprovou no ano passado uma mudança que limitou o reajuste do salário mínimo ao teto do arcabouço. Ainda assim, é inviável manter essa regra. A gente vai ter que mudar as vinculações de gastos de saúde e educação. Não dá para continuar vinculando esses gastos às receitas, porque senão metade do esforço de aumentar a carga tributária para melhorar o fiscal é jogada fora. É preciso usar indexadores mais adequados para as políticas públicas e compatíveis com o equilíbrio fiscal macroeconômico. Tem também a previdência. Há muitas coisas que não passaram lá atrás [na reforma aprovada em 2019]. A gente descobriu que está envelhecendo mais rapidamente do que a gente imaginava ou visualizava lá em 2019.
Elena Landau: A primeira é a reforma da previdência. É o que mais cresce. O Brasil confunde previdência com política social. É preciso voltar atrás na ligação da previdência com o salário mínimo. Você tem uma coisa ou outra. Ou valoriza o mínimo e tira o indexador da previdência ou tira a valorização do mínimo. Há também uma série de regimes especiais, como o microempreendedor individual (MEI). Uma segunda medida é a reforma do Estado. A reforma administrativa talvez não gere tanta economia, se não houver limites para os gastos extrateto. Mas a principal reforma de Estado é uma de privatizações radicais. Há [atualmente] o aprofundamento do uso de estatais. Além da indexação de educação e saúde.
Marcos Mendes: A medida essencial é dissociar o salário mínimo dos benefícios assistenciais e previdenciários. Em segundo lugar, é preciso fazer uma grande reforma nas principais políticas públicas. Há muito o que melhorar na focalização do Bolsa Família. Tem programas que precisam ser extinguidos, como o abono salarial. Tem também uma questão ligada à grande reforma que é muito mais moral e de equidade: frear o avanço das profissões jurídicas sobre o Orçamento, com os penduricalhos, as exceções desses Poderes em relação ao teto de gastos etc. Essa tomada corporativa de parte do Orçamento pelo Judiciário desmoraliza muito as instituições e tira poder do governo para propor reformas que direcionadas a camadas mais pobres, como os beneficiários do Bolsa Família ou de aposentadorias de baixa renda. É preciso também retomar um programa de privatizações e extinção de empresas públicas desnecessárias. Há os Correios, a Ceitec (Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada), a Emgea (Empresa Gestora de Ativos). Tem uma série de pequenas empresas estatais que servem apenas de cabide de emprego.
O Brasil deve ter um déficit primário na casa de 0,6% do PIB neste ano, segundo o Boletim Focus. Qual o resultado primário necessário para estabilizar a dívida bruta como proporção do PIB e em que horizonte de tempo é razoável que isso seja obtido?
Valor: Arminio: A aritmética com números atuais é extremamente cruel: seria necessário um superávit primário de cerca de 3,5% do PIB, um ajuste de mais de 4% do PIB. O que importa [para a trajetória da dívida] é a diferença entre a taxa de juros e o crescimento [econômico]. Com um ajuste recorrente e de boa qualidade, seria razoável trabalhar com mais crescimento e juros mais baixos. Um ajuste de cerca de 2,5% estabilizaria a dívida. Como prevalece um elevado grau de ceticismo quanto ao ajuste, e me parece de todo necessário reduzir a dívida, eu trabalharia com uma meta de primário de pelo menos 3,5% do PIB, obtido em três anos, e acompanhado de reformas da previdência e do Estado.
Bráulio Borges: No ano passado houve déficit primário estrutural (medida que exclui do cálculo eventos fiscais não recorrentes e o ciclo da atividade econômica, entre outros fatores) de 1% do PIB. Esse déficit a grosso modo gira em torno disso desde 2017. A gente precisa de superávit primário estrutural de pelo menos 1% ou 1,5% do PIB, menos para 1% e mais para 1,5%. Isso dá a uma ideia do tamanho do desafio. A Tese do Século [aplicada pelo Supremo Tribunal Federal, prevê que o ICMS não deve ser incluído na base de cálculo da PIS e da Cofins] tira quase 1% do PIB de arrecadação do governo. Isso vai acabar em 2026 ou 2027. As receitas do petróleo vão crescer em quase 0,5% do PIB daqui até o fim da década. Tem o Perse (Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos), que custava R$ 15 bilhões por ano e que foi encerrado. Então, somando tudo isso, nos próximos 3 ou 4 anos teremos ganho de 1% a 1,5% do PIB de arrecadação. Se limitarmos a despesa e deixarmos esse aumento de receita acontecer, a gente pode eventualmente até chegar no superávit primário ou perto do superávit necessário, de 1% a 1,5% do PIB, um pouco antes do que o governo está projetando. A gente não pode cair na tentação de usar essa receita extra para aumentar ainda mais a despesa.
Elena Landau: Até por sinalização, o resultado primário tem que voltar para superávit de pelo menos 2% do PIB em algum momento. Aquela ideia, de que gastar muito gera receitas e que com isso a relação dívida/PIB cai, não engana. A gente já viu isso antes. É uma ilusão e não funciona. O Brasil tem essa mania de olhar para o lado mais fraco da banda.
Marcos Mendes: A gente precisa de um superávit de pelo menos 2,5% do PIB. Mas, para ter alguma segurança, teria que ir a 3% do PIB. Significa um ajuste fiscal de 3,7% do PIB, são R$ 400 bilhões. É muita coisa, que você não consegue fazer de uma hora para outra. Agora, é possível melhorar expectativas não necessariamente fazendo todo o ajuste, mas estando no caminho correto, com políticas consistentes e mostrando que será possível fazer todo esse ajuste daqui a 5 ou 6 anos. Isso já melhoraria muito as condições de solvência. As taxas de juros caem, antecipando essa consistência do ajuste. Mas as condições políticas estão muito difíceis. Eu só vejo a possibilidade de um ajuste fiscal dessa dimensão com um novo governo, que mude a orientação. Esse novo governo precisa apresentar um pacote bem amplo e consistente de reformas, para colocar o peso do Executivo na discussão política e impedir que o Legislativo crie a sua própria agenda, que tem sido a de aumentar benefícios e despesas.
Link da publicação: https://valor.globo.com/25-anos/noticia/2025/04/30/desequilibrio-fiscal-e-obstaculo-ao-crescimento.ghtml
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