E se a causa da retração não estiver do lado da demanda, mas da oferta?
Valor
A perda de peso da indústria de transformação no PIB é um dos fenômenos estruturais mais marcantes da economia brasileira recente. Em preços constantes de 2005, entre 1995 e 2022 essa participação caiu de 15,7% para 9,8%. Por que o Brasil se desindustrializou tanto? Duas hipóteses são frequentes.
A primeira é a “doença holandesa”, expressão que descreve a perda de competitividade da indústria na Holanda após a descoberta de grandes reservas de gás natural no Mar do Norte, nos anos 1970. O argumento é que uma bonança de commodities – combinada com a entrada de capitais por ela induzida – leva à valorização da taxa de câmbio. Com isso, bens industriais exportados encarecem em dólares e os importados barateiam em reais. A indústria perde competitividade nas duas pontas: exportar fica mais difícil; importar, mais barato. O resultado é a retração da produção industrial doméstica.
Essa explicação se aplica com clareza ao período de 2003 a 2011, quando o crescimento acelerado da China elevou os preços internacionais dos produtos agrícolas e minerais exportados pelo Brasil e atraiu um volume expressivo de capitais estrangeiros. O real se valorizou, as importações de bens industriais aumentaram e as exportações industriais perderam espaço. Houve reversão do processo de substituição de importações e reprimarização das exportações.
A hipótese da doença holandesa explica bem a desindustrialização apenas nesse intervalo. É que entre 1995 e 2003 a taxa de câmbio real se depreciou de forma significativa. E entre 2011 e 2022, voltou a se desvalorizar fortemente. No agregado de 1995 a 2022, o real se desvalorizou 93% frente ao dólar, considerando a inflação brasileira e a norte-americana. Se a trajetória cambial fosse o único fator relevante, a desindustrialização de 2003-2011 teria sido mais do que compensada pela reindustrialização ocorrida de 1995 a 2003 e de 2011 a 2022. Isso não aconteceu.
Poderia arguir-se que a indústria sofre mais com valorizações do câmbio (que reduzem o uso da capacidade já instalada) do que ela se beneficia com desvalorizações (porque a capacidade instalada precisaria se expandir). Testamos essa hipótese e ela também não se confirma: o efeito do câmbio sobre a parcela da indústria no PIB foi na verdade menor na valorização de 2003-2011 do que nas desvalorizações de 1995-2003 e 2011-2022. A doença holandesa não explica a tendência geral de contração da indústria no período.
A segunda hipótese é a da desindustrialização prematura. Aqui, a explicação não está na concorrência externa, mas no deslocamento interno da demanda. O crescimento econômico, a partir de níveis de renda mais baixos, tende a elevar proporcionalmente mais a demanda por bens industriais e serviços do que por bens agrícolas – com a indústria ganhando peso no PIB. Mas, em níveis de renda mais altos, a demanda passa a se concentrar nos serviços, reduzindo a participação da indústria. A relação entre renda per capita e participação da indústria no PIB segue uma curva em U invertido: cresce nas primeiras fases do desenvolvimento e cai quando os serviços passam a predominar. O que define a prematuridade é o ponto de virada dessa curva.
No Brasil, a indústria começa a perder participação em níveis de renda per capita muito mais baixos do que os observados em países desenvolvidos. Em artigo de 2016, o economista Dani Rodrik, da Universidade de Harvard, estima que a desindustrialização nos países em sua amostra se inicia por volta de US$ 20 mil per capita (em valores de 1990). Em nossas estimativas para o caso brasileiro, a perda de participação da indústria começou com renda per capita em torno de US$ 7 mil.
A desindustrialização brasileira é, sem dúvida, prematura. Mas será que a evolução da renda per capita entre 1995 e 2022 explica a queda da indústria no período? A resposta é negativa. Em 1995, a renda per capita brasileira ainda estava bem abaixo de US$ 7 mil, patamar só alcançado em 2010. Portanto, em 1995-2010, a renda ainda era suficientemente baixa para que o crescimento econômico favorecesse o aumento da participação da indústria no PIB. Só a partir de 2010 o Brasil teria ingressado na fase descendente da curva, quando a renda per capita começa a reduzir naturalmente o peso da indústria. E os dados mostram que o impulso positivo da renda de 1995 a 2010 foi mais forte do que a retração por ela induzida a partir de então. Se só a renda per capita importasse, a indústria teria maior participação em 2022 do que em 1995. A hipótese da evolução da renda como causa da desindustrialização prematura tampouco se sustenta.
Se nem a doença holandesa gerada pelo câmbio valorizado nem a desindustrialização prematura associada ao crescimento da renda explicam a queda da indústria entre 1995 e 2022, o que explica? É o tema de pesquisa em andamento.
As hipóteses anteriores supõem que a indústria encolheu por perda de demanda – seja pela valorização cambial que favorece produtos estrangeiros, seja pela mudança estrutural da demanda na direção dos serviços. A pesquisa segue outra direção: e se a principal causa da retração da indústria não estiver do lado da demanda, mas da oferta? A hipótese é que se trata de um fenômeno mais ligado à deficiência de oferta.
Nos países avançados, a produtividade da indústria tende a crescer mais do que a média da economia. Isso torna os bens industriais relativamente mais baratos e, assim, elevam sua demanda. Os preços relativos da indústria caem, mas sua fatia no PIB tende a se sustentar. Em compensação, por causa do maior ganho de produtividade, a participação da indústria no emprego total cai bastante.
Ao contrário dos países avançados, no Brasil não é só que a produtividade da indústria cresça menos do que a do resto da economia; na verdade, ela tem se reduzido ao longo do tempo, inclusive em termos absolutos. Esse declínio é um dos fatores que explicam por que, também ao contrário do que ocorre nos países desenvolvidos, os preços relativos da indústria não tendem a cair. No caso brasileiro, à tendência de deslocamento da demanda da indústria para os serviços à medida que a renda cresce parece se somar uma tendência de contração do lado da oferta: o menor crescimento da produtividade industrial tende a elevar os preços dos bens industriais, reduzindo adicionalmente a absorção interna. Essa dupla tendência contracionista ajudaria a explicar a desindustrialização precoce do país.
Nossa pesquisa também investigará se o declínio da produtividade foi ou não compensado por salários industriais menores. E examinará se os preços ao consumidor de bens industriais cresceram mais do que os ao produtor, o que poderia indicar aumentos de impostos ou custos logísticos. A ideia é distinguir o que se deve a problemas “dentro da fábrica” e o que vem “depois da fábrica”. Um novo artigo apresentará resultados da análise estatística em andamento.
Edmar Bacha é diretor do IEPE/Casa das Garças. Este texto deriva do artigo “Why did Brazil deindustrialize so much? Testing the Dutch disease and premature deindustrialization hypotheses”, de E. Bacha, V. H. Terziani, E.A. Guimarães e C. Considera, disponível no site da Casa das Garças, iepecdg.com.br.
Link da publicação: https://valor.globo.com/25-anos/noticia/2025/04/30/nem-cambio-explica-o-encolhimento-da-industria.ghtml
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