Estadão
O papel de lideranças políticas responsáveis é o de contribuir para reduzir, e não aumentar, os graus de incertezas sobre o futuro
Ouvido pela imprensa logo após a divulgação do resultado da eleição, o irmão mais velho do agora papa Leão XIV contou que havia perguntado ao então cardeal Robert Prevost se assistira ao filme Conclave – para “saber como se comportar” num conclave verdadeiro. No filme, o cardeal encarregado de organizar o escrutínio secreto faz memorável discurso, no qual afirma: “Para trabalharmos juntos e crescermos juntos, precisamos ser tolerantes. Nenhuma pessoa ou facção deve buscar dominar outra. (…) É a variedade, a diversidade de pessoas e opiniões, que nos dá força. (…) Há um pecado que passei a temer acima de todos os outros: a certeza. A certeza é o grande inimigo da unidade. A certeza é o inimigo mortal da tolerância. (…) Nossa fé é algo vivo, justamente porque caminha de mãos dadas com a dúvida. Se houvesse apenas certeza e nenhuma dúvida, não haveria mistério e, portanto, não haveria necessidade de fé”.
Essa sábia reflexão me parece inteiramente apropriada às grandes democracias de massas urbanas. Kenneth Arrow, a quem já citei neste espaço, afirma que “enormes danos têm se seguido à crença na certeza, seja em inevitabilidades históricas, seja em posições extremas sobre política econômica”. Afinal, economias são afetadas pela perda de credibilidade de seus governos, que cedo ou tarde resulta da busca obstinada de certezas férreas.
Nosso presidente tem suas recorrentes certezas, algumas vindas de longe. Em entrevista ao jornal Valor (17/9/2009), Lula da Silva afirmou: “Eu acho que a gente não deveria ficar preocupado em saber quanto o Estado gasta. (…) A preocupação é se o Estado está cumprindo com suas funções de tratar bem a população”. Longa é a lista desde então. Em 8/2/2024: “Se der para zerar o déficit, ótimo; se não der, ótimo também”.
Neste mês comemoramos o 25.º aniversário da Lei de Responsabilidade Fiscal. Em junho de 2000 o PT ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação direta de inconstitucionalidade para contestar a constitucionalidade da lei. Desde sempre o PT enfatiza que a responsabilidade fiscal não deve ser buscada às expensas da responsabilidade social, que implicitamente deveria ter sempre precedência.
Mas no mundo real, na prática de todo governo, qualquer que seja sua coloração ideológica, é imprescindível fazer escolhas e definir prioridades. Que afetam o nível, a composição e a eficácia do gasto público e das receitas tributárias. A preocupação dos formuladores de políticas públicas deve se concentrar na qualidade das despesas e das receitas e em seu efeito sobre o crescimento sustentado da economia, da renda e do emprego, com a preservação da inflação sob controle.
Não é tarefa fácil – nunca foi e nunca será. Tem longa história entre nós, e estará conosco por muitos anos à frente, a pressão estrutural por aumento do gasto público. Pressão compreensível em uma grande democracia de massas urbanas com inaceitáveis níveis de pobreza e desigualdade de oportunidades na partida, que estão na raiz de nossa excessiva concentração de renda e riqueza.
Quando a crença de um governo, e de parte expressiva da sociedade, é de que essas demandas exigem ações “intensivas em Estado”, o governo tende a dispersar suas atividades, sobrecarregar-se de responsabilidades, fazer promessas que não pode cumprir, lançar projetos que não tem como financiar ou executar. E, ao fazê-lo, assumir dívidas excessivas.
A experiência histórica, nossa e de outros, mostra nesse particular lições importantes. Quando ambos, governos e a sociedade que os elege, não têm introjetado como valor um mínimo de sentido de responsabilidade fiscal, sempre encontram formas de expandir ou financiar seus gastos, por vezes ao arrepio das normas e independentemente do estatuto jurídico de seus bancos centrais. Nenhum banco central tem o poder de gerar crescimento sustentado da economia no longo prazo através da política monetária (ainda que possam e devam agir em momentos de crise) quando o governo não faz o que lhe compete: definir com clareza suas prioridades, articular suas atividades com o Legislativo, executá-las com um mínimo de eficiência e visão de longo prazo.
O Brasil tem pessoas competentes nos setores público e privado. Profissionais que sabem que a boa política pública deve ser medida por sua eficácia, e não por sua pretensa virtude ou pela expressão de sentimentos, por meritórios que sejam. É preciso identificar os instrumentos aptos a permitir a realização dos objetivos, que devem, instrumentos e objetivos, ser críveis aos olhos da sociedade e da opinião pública informada.
A existência de instituições apropriadas e de governos capazes, confiáveis e efetivos operacionalmente, são duas das mais importantes características de experiências bem-sucedidas de desenvolvimento econômico e social sustentados no longo prazo. O papel de lideranças políticas responsáveis, em particular do presidente da República e seus principais colaboradores, é o de contribuir para reduzir, e não aumentar, os graus de incertezas sobre o futuro. Através de diálogo com base em moderação, serenidade, postura e compostura, que possa inspirar confiança e cooperação na busca de objetivos maiores compartilhados.
Mães, feliz dia!
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